17 de setembro de 2010

Impasse (2010)

A primeira coisa que eu aprendi no curso de “Teoria, Linguagem e Crítica Cinematográfica”, ministrado pelo crítico Pablo Villaça, foi justamente a ética da crítica cinematográfica e o impasse de escrever uma crítica sobre o filme ou documentário que foi feito por um amigo seu ou uma pessoa conhecida, entre outras possibilidades.

É até engraçado que eu use essa palavra “impasse”, pois nessa crítica ela não retrata só o que é representado no documentário e o nome do mesmo, mas também a questão da moralidade crítica de minha parte. Fazer ou não fazer a crítica de um documentário feito por, em sua maioria, amigos e colegas? E que inclusive teve minha participação? Ou iria apenas relevar os erros e críticas que faria em minha crítica cinematográfica?

Não poderia fazer isso. Nem com a equipe de produção, nem com os diretores Fernando Evangelista e Juliana Kroeger. Pois esse é uma das grandes demonstrações que o documentário Impasse faz: mostrar os erros de um sistema.

Em maio e junho de 2010, milhares de pessoas foram às ruas de Florianópolis para protestar contra o aumento da tarifa do transporte coletivo. Além de cenas que não foram exibidas em nenhuma tevê, incluindo flagrantes de violência durante os atos públicos, Impasse revela o que pensam usuários, trabalhadores, especialistas e empresários do transporte. Expõe as contradições e as diferenças de posição dos estudantes, dos representantes do governo municipal e do governo estadual. Discute questões que se entrelaçam e se completam: Por que a cidade se tornou um símbolo na luta pelo transporte público? O que aconteceu durante a ação da polícia militar na Universidade do Estado de Santa Catarina? Por que a mobilidade urbana é um dos grandes temas do século XXI? Existe, afinal de contas, saída para este impasse?

É importante salientar que Impasse não é um documentário comum. Na verdade chega a ser um trabalho quase que puramente jornalístico. Em sua maioria, são cenas filmadas em dias de manifestações que sofreram uma rápida edição para ser transformada para o formato documentário. E é exatamente esse um dos poucos erros que o documentário comete.

Com treinamento cinematográfico básico, os diretores Fernando Evangelista e Juliana Kroeger enfrentam várias combinações terríveis que podem danificar em qualquer momento a estrutura toda de um documentário. Começando com o ambiente em foco: um cenário de manifestações, estudantes correndo para todos os lados, briga com a polícia, etc. Infelizmente o diretor de um documentário desse tipo, não tem como gritar corta e começar a cena mais uma vez, o que dificulta o diretor a escolher os tipos de plano em que vai filmar e o que a montagem fará a seguir.

Um grande exemplo disso é a cena em que, para jogar contra a luz e sem os manifestantes de fundo, os diretores decidem fazer um plano contra-plongeé que surge extremamente deslocado.Várias sequências também contam com gravações feitas por estudantes, o que acaba trazendo cenas cômicas - como quando um dos estudantes é atingido por uma arma de choque policial -, e outras marcantes, como a de policiais entrando na Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), apenas para agredir de forma aleatória os estudantes.

Aliás, isso é o grande êxito do documentário Impasse, o assunto debatido é tão forte, polemico e imediato que acaba reduzindo a quase nada alguns erros técnicos cometidos na obra. A montagem feita pela Juliana Kroeger, por exemplo, é elegante ao mostrar para o espectador as ações dos policiais contra os estudantes e logo depois priorizar as entrevistas com os responsáveis pela segurança e transporte do Estado, algo que acaba fazendo o espectador perceber as mentiras ou desinformações dos envolvidos na questão de segurança. Observe como o Secretário de Segurança Pública compara o cassetete com a arma taser ou, até mesmo, as cenas de transeuntes e lojistas reclamando das manifestações e comentando vidros quebrados pelos estudantes.

A edição ainda acerta de forma competente em duas ocasiões: a primeira é em mostrar cenas emocionantes dos estudantes cantando abraçados e mostrando um lado nunca visto dos manifestantes, o que acaba indo de encontro com os transeuntes que acusavam os estudantes de baderneiros. E a outra cena, ainda mais bela esteticamente, ao mostrar as manifestações de 2004 e 2005 com as imagens filmadas pelo próprio Terminal de Ônibus da Capital (TICEN), mostrando a perseguição da polícia contra os estudantes.

Por fim, “Impasse” é um exercício de reflexão sobre a origem e o porquê das manifestações, algo que deveria ser obrigatório para todos os cidadãos desse país. As pessoas que acham que não existe mais censura, serão surpreendidas; pessoas que acreditam nas desculpas policiais para bater em estudantes, inclusive, os chamando de criminosos, serão surpreendidas; as pessoas que achavam que os estudantes eram só depredadores, serão surpreendidas; assim como, eu, me senti surpreendido por Fernando e Juliana ao retratar de forma tão emocionante, cômica e tensa um documentário sobre manifestações populares.

E a julgar pela quantidade gigantesca de pessoas que foram prestigiar o trabalho dos dois diretores na estréia, ele não será esquecido e muito menos “abafado” como a prefeitura insiste em fazer com as manifestações estudantis. Parabéns aos diretores e sejam bem vindos a um Brasil que insistimos em não conhecer. Seja bem vindo ao “Impasse” no transporte público de Florianópolis.

(4 estrelas em 5)

PS: Para outras informações e trailer do documentário, acessem: www.impasse.com.br

13 de setembro de 2010

Vicio Frenético (2010)


Logo quando comecei a assistir ao novo filme de Werner Herzog, Vicio Frenético, veio ao meu pensamento à cinebiografia do diretor. Aguirre, a Cólera dos Deuses; Fitzcarraldo; O Enigma de Kasper Hauser; O Homem Urso; Lições da Escuridão, entre outros...

É incrível como um diretor que fez parte do Novo cinema Alemão - que traz obras que não considero como sensacionais como tantos outros fazem alusão – fez obras tão incríveis e apaixonantes como as listadas no primeiro parágrafo.

Então é com vergonha, que assumo que pensei que o projeto a partir de seu terceiro ato iria desandar. Parecendo que não conhecia o diretor alemão, acreditei que Herzog ficaria no politicamente correto, e que não teria coragem para fazer o que fez. Uma obra quase que irretocável e um dos melhores filmes do ano.

Na história escrita por William M. Finkelstein, após salvar um prisioneiro de afogamento em decorrência do furacão Katrina, o detetive Terence McDonagh (Nicolas Cage) é promovido a tenente. Com as costas seriamente contundidas, passa a depender de analgésicos para agüentar a dor. Um ano depois, está viciado em Vicodin e cocaína, mas continua trabalhando em nome da lei. Quando uma família de imigrantes africanos é assassinada, ele é nomeado para o caso e sai à procura do assassino. Mas seu próprio envolvimento em atividades ilegais compromete seus padrões morais e ameaça colocar sua missão em risco.

A direção de Herzog é ao mesmo tempo confusa e brilhante. Ao passo que os enquadramentos são sempre certeiros, o cineasta por vezes confunde o espectador em algumas cenas embaçadas e “frenéticas” (com o perdão do trocadilho). Veja por exemplo quando vemos um crocodilo (acredito que era), na estrada em que Terence vai conversar com o policial responsável da área, para anular uma multa. Ou as cenas das “iguanas”, em que o diretor brilhantemente consegue passar a sensação de imaginação fértil do personagem principal, sempre mostrando embaçado o animal em questão e logo depois dando zoom in no rosto de Terence. Provocando uma sensação de instabilidade.

Em relação as atuações, Nicolas Cage como Terence McDonagh nos traz a melhor atuação de sua carreira até o presente momento. Um personagem que ao mesmo tempo que mostra uma faceta seriamente repulsiva, nos mostra um personagem que desperta uma sensação de pena no espectador em alguns momentos por nós acreditarmos que Terence pode voltar a ser o herói que vimos no começo do longa, ou até mesmo que ele vai conseguir se livrar do vício.

Veja por exemplo a cena em que Terence faz um interrogatório cruel contra duas senhoras, e logo depois proíbe seu parceiro de matar outro assassino a sangue-frio. Isso é justamente usado para manipular nossos sentimentos, o que é usado brilhantemente pelo diretor, diga-se de passagem.

Eva Mendes como Frankie, nos traz uma atuação correta; ficando em segundo plano a maior parte do tempo em que aparece em tela. Ao passo que Val Kilmer apenas aparece em cena, sem trazer absolutamente nada de novo.

Por fim, Vício Frenético talvez não seja a melhor obra de Herzog, já que ainda fico com Aguirre e Lições da Escuridão, mas certamente figurará nos melhores filmes do ano de muitos críticos. Com merecimento, pois esse filme é mais uma obra cinematográfica complexa, inteligente e sutil que Herzog nos proporciona. E cada vez mais o diretor está perto de chegar ao patamar de melhor diretor alemão de todos os tempos.

(5 estrelas em 5)

Mary & Max (2010)


Cada vez mais é comum adultos irem assistir animações em cinemas, esperando obras com conceitos interessantes e dignas de aplausos. Apesar de ainda haver um ou outro preconceito quanto as animações em geral, as animações estão cada vez mais presentes em listas de melhores filmes longa-metragens do ano.

Claro que não podemos crucificar também as pessoas que ainda vivem desse preconceito, pois afinal elas viveram numa época inteiramente dominada pela Disney e seus filmes “infantis”. Portanto o preconceito existe, justamente por acharem que os “filmes animados” continuam no mesmo formato. O que não é verdade.

As animações atuais tem cada vez mais passado por reformulações, e principalmente investido nos seus roteiros. Ainda que Walt Disney fizesse muitas obras-primas, as animações ficaram no controle automático passado certo tempo.

Hoje em dia temos a Pixar, a Dreamworks, entre outras companhias que prezam por uma animação singular. Não apenas divertida, mas também tensa e inteligente. Afinal, nem a mais das evoluidas mentes do mundo acharia que teríamos filmes no formato de animação falando de ateísmo, de religião, de contrastes sociais, isso só para listar alguns...

Obras como Valsa com Balshir, Persépolis e agora Mary e Max são na minha opinião inteiramente feitas para adultos. E estão fazendo, como salientei no inicio, os adultos irem cada vez mais para o cinema prestigiar essas brilhantes obras...

Em Mary & Max, o filme acompanha dois personagens solitários, cujas vidas se cruzam pelo maior dos acasos: uma página aleatória aberta em uma lista telefônica. Motivada por uma dúvida infantil, a australiana Mary Daisy Dinkle, de 8 anos, decide escrever ao nova-iorquino Max Jerry Horowitz, de 44 anos. Junto à carta, alguns desenhos, uma barra de chocolate e a dúvida: "de onde vêm os bebês nos Estados Unidos". A correspondência inocente muda a vida de ambos para sempre, iniciando uma história que transcorre por mais de uma década.

A primeira direção a ser elogiada é a de arte. O trabalho de Craig Fison é incrível, e nos mostra um clima sombrio impressionante. Veja por exemplo como as cores cinzas são recorrentes no longa. E mais, olhe Nova York e o jeito como é colocada no longa. De uma maneira suja e sem cor, ao passo de que a cidade australiana em que Mary vive, tem cores um pouco mais fortes, mas é extremamente mal cuidada e bastante isolada do mundo. Como nos mostra as tábuas completando as janelas...

Os diálogos do roteiro escrito por Adam Elliot são extremamente inteligentes e sutis. Veja como cada personagem muda o estilo de falar sobre determinados tópicos: uma criança de 8 anos para um senhor de 44. Aliás, salientado com uma força impressionante por Philip Seymour Hoffman (Max) e Tonny Collete (Mary).

Veja a cena em que Mary e Max discutem sobre religião, e Max diz que é ateu. O passo seguinte do roteiro é mostrar como o ateu se sente em relação à vida e a sociedade. E me emociona muito, uma frase usada por Max para comprovar isso: “Às vezes penso que queria ser o distribuidor de todos os chocolates no céu, mas aí me lembro que sou ateu, e que não irei para o céu”, algo que a direção precisa de Elliot completa com o sonho se evaporando do personagem, na tela. É tocante.

Aliás, Max é uma figura fascinante. Cansado de viver sem amigos e da sociedade, ele não agüenta a rotina em que vive, mas mesmo assim não consegue sair. Por mais que as coisas aconteçam positivamente em sua volta. Ganhar um prêmio ou uma mulher que parece interessada por ele. Nada faz Max perder esse seu sofrimento do mundo, esse isolamento, e conseqüentemente as crises nervosas que o personagem possui.

A direção de arte acerta em cheio em retratar esse mundo melancólico que Max vive. Vemos toda sua depressão, não apenas em suas ações, mas também em seu lar e sua paixão por uma animação...

Já Mary é uma personagem com forte interessante para conhecer um novo mundo. Uma nova sociedade. Já que não possui nenhuma amizade em sua cidade, também vive reclusa, mas justamente tem o interesse de conhecer novos lugares, para sair dessa “prisão” e conhecer coisas novas. Veja como sempre as perguntas sobre o mundo e sua existência sempre parte dela. O único problema de Mary é que ela é a parte mais frágil da amizade. Mary geralmente é a que mais sofre na relação dos dois personagens.

Olhe por exemplo quando Max não aceita um texto escrito por Mary, e como a casa da personagem vira pro avesso. Mais uma vez retratado brilhantemente pela direção de arte de Frison.

Por fim, como em toda a animação competente, a lição pra se levar é a da amizade. Não importando credo, cor ou classe social; e no mais novo exemplo, nem a distância. A amizade pode ser com qualquer pessoa, que entenda a gente ou não. Que ajude a gente ou não. O importante é que ela está lá para nos tirar de um mundo sujo, corrupto e rotineiro. É a amizade de duas pessoas que gostam uma da outra. É a amizade de Mary & Max.

(5 estrelas em 5)