14 de janeiro de 2013

Viagem, A


Cloud Atlas, Alemanha/EUA, 2012. Direção: Tom Tykwer, Andy Wachowski e Lana Wachowski. Roteiro: Tom Tykwer, Andy Wachowski e Lana Wachowski, baseado no livro de David Mitchell. Elenco: Tom Hanks, Halle Berry, Jim Broadbent, Hugo Weaving, Jim Sturgess, Doona Bae, Ben Whishaw, Keith David, James D’Arcy, Susan Sarandon e Hugh Grant. Duração: 172 min.

Eu geralmente levo um caderno de anotações para registrar precisamente os momentos que irei colocar no papel futuramente em uma crítica. Absorver o que cada instante deseja passar ou as decisões narrativas do diretor, além de, durante este percurso, assinalar alguns diálogos que meu cérebro certamente não descreveria tão fielmente em um texto. Tamanha foi minha surpresa, portanto, quando em A Viagem deixei meu bloco de anotações abandonado em um canto, num determinado momento do longa-metragem, apenas para participar do que estava presenciando. Poder respirar o que estava sendo apresentado em tela sem nenhum tipo de distração – nem o meu próprio trabalho.

Peço desculpas, logo, por talvez não conseguir transmitir a experiência enriquecedora que A Viagem pode provocar. Não por sua (intrigante e interessante) maquiagem ou por suas atuações ou pela direção comprometida de três pessoas ou, até mesmo, pela exemplar ficção científica que nos é apresentada. Não. É a mensagem do filme que torna-se o fator mais importante conforme a narrativa vai sucedendo, que, mesmo com erros nítidos (como investir em piadinhas deslocadas em determinado período da trama), surge sempre de uma maneira clara e apaixonante.

Escrito pelos mesmos diretores do filme, Tom Tykwer, Andy Wachowski e Lana Wachowski, a história gira em torno das almas de várias pessoas que vagam através dos tempos. Constitui-se em seis histórias diferentes, ocorridas em épocas e países distintos, que estão de alguma forma interligadas. No passado, acompanhamos as histórias de um escravo que tenta ser livre e procura a ajuda de um advogado; um jovem compositor que escreve uma histórica sinfonia e uma jornalista que tenta revelar a verdade acerca de um reator nuclear. Já no presente, é nos relatado a história de um editor que se vê numa grande rede de problemas e acaba parando em um asilo. Enquanto em dois futuros diferentes, seguimos um clone que tem sua vida mudada de forma drástica e uma realidade pós-apocalíptica que retorna a humanidade para uma época de selvas, fé e espíritos desencarnados.

Com essa história complexa em mente, fica ainda mais admirável o trabalho do montador Alexander Berne e as ambientações díspares criadas pelos eficientes irmãos Wachowski e Tom Tykwer. Uma vez que, oferecendo um irretocável design de produção e uma fotografia que contrasta bem cada momento, os diretores encontram tempo (que não falta) para sua maior ambição: a crítica ao preconceito. Não há um comodismo de época por parte de seus realizadores e muito menos uma crítica deslocada, pois em cada minuto da narrativa somos lembrados de nossos problemas como seres humanos em enxergar o próximo como alguém igual. “A separação é apenas uma ilusão”. Aliás, o filme insiste tão forte neste ponto dramático que algumas situações acabam surgindo de forma forçada e gerando uma graça involuntária – como a cena deslocada em que uma das personagens de Doona Bae golpeia alguém na cabeça e afirma: “Não me chame de imigrante”. Algo que fica ainda pior quando a cena espirituosa é trocada por uma muito mais forte: alguém sendo incinerado após cumprir suas funções trabalhistas.

Todavia, isso é algo muito mais pontual e não prejudica as quase três horas de filme. Seja nos sussurros de almas que ouvimos enquanto um escravo é chicoteado, quando uma mulher reivindica seus direitos à mesa num passado obscuro, no momento em que apenas a tragédia alcança o estrelato para um escritor ou na arte como sinônimo de liberdade – os diretores sempre mantêm a força de sua história. É uma decisão inteligentíssima, além disso, utilizar os pontos em comum das tramas em cada momento histórico – basta notar, por exemplo, o futuro em que naves são tão presentes quanto as selvas e a sobrevivência brutal para as classes mais desfavorecidas. Melhor, observe como as estradas que são percorridas pelos personagens destoam dos carros utilizados: o antigo percorrendo o novo. Ainda que as convenções que os diretores queiram quebrar sejam muitas, como determinado personagem afirma durante o filme, a verossimilhança com nossa própria realidade ou passado assusta e cria algo impossível de não acreditar.

Assim, a histórica influência dos estrangeiros catequizando os mais “fracos” com sua tecnologia ou a mesma forma ditatorial e preconceito contra as minorias que retornam no futuro, encontram escopo social. Do mesmo modo, “Não podemos ter divisórias”, “Não me sujeitarei a tal ato criminoso”, “Um puro-sangue foi simpático comigo”, “Eles nos alimentam com nós mesmos” e “O fraco é a carne que o mais forte come” surgem fortíssimas em várias ocasiões. Como se não fosse o bastante, os diretores também proporcionam momentos narrativos excepcionais – particularmente, o meu favorito é a fusão feita de um carro sendo jogado da pista, água invadindo duas épocas, e culminando em um cemitério de mortos por meio de uma faísca. E se ninguém se destaca num elenco cheio de boas interpretações, é a trilha de Reinhold Heil, Johnny Klimek e Tom Tykwer que deixa uma marca gigantesca em seus traços de melancolia.

É uma pena, consequentemente, que A Viagem possivelmente tenha apenas uma aclamação póstuma, inclusive, sendo injustamente posto em várias listas de piores filmes lançados em 2012. Porque, mesmo sendo um filme que tenha falhas pontuais e que poderia harmonizar momentos mais emocionais, é uma obra que será comentada daqui a alguns anos como uma das grandes ficções-científicas de nosso tempo. E, talvez, quando estivermos ao redor de uma fogueira com nossos netos, contaremos o tempo em que presenciamos esta história.

                                    

2 comentários:

Márcio Sallem disse...

Normalmente aceito de bom grado críticas negativas a filmes que eu gosto, mas eu NUNCA entenderia como A Viagem caí em lista de piores. Sério! Ok, poderiam chamá-lo de pretensioso, de extenso, de pseudo-filosófico e etc, mas como não reconhecer tantos méritos?

Enfim, eu nem ia comentar isso, mas foi a última coisa que li no seu texto. Na verdade, a retórica do preconceito eu enxerguei, mas como todo grande filme, não achei que fosse o tema central da narrativa. Existe um quê (óbvio) espírita, e uma mensagem otimista de que nossas ações ecoam ao longo dos anos. Como a personagem de Halle Berry, negra, poderia estar na década de 70 investigando se não fosse a ação de homens como Edwin no navio negreiro? Ou então sem a Somni-451, o que seria da vida no mundo pós-apocalíptico?

A perpetuação de uma ação humana ao longo da história e, consequentemente, do seu espírito é quem conduz para mim a narrativa. Uma das melhores que eu já vi... na vida.

Márcio Sallem disse...

Normalmente aceito de bom grado críticas negativas a filmes que eu gosto, mas eu NUNCA entenderia como A Viagem caí em lista de piores. Sério! Ok, poderiam chamá-lo de pretensioso, de extenso, de pseudo-filosófico e etc, mas como não reconhecer tantos méritos?

Enfim, eu nem ia comentar isso, mas foi a última coisa que li no seu texto. Na verdade, a retórica do preconceito eu enxerguei, mas como todo grande filme, não achei que fosse o tema central da narrativa. Existe um quê (óbvio) espírita, e uma mensagem otimista de que nossas ações ecoam ao longo dos anos. Como a personagem de Halle Berry, negra, poderia estar na década de 70 investigando se não fosse a ação de homens como Edwin no navio negreiro? Ou então sem a Somni-451, o que seria da vida no mundo pós-apocalíptico?

A perpetuação de uma ação humana ao longo da história e, consequentemente, do seu espírito é quem conduz para mim a narrativa. Uma das melhores que eu já vi... na vida.