18 de setembro de 2013

Invocação do Mal

The Conjuring, EUA, 2013. Direção: James Wan. Roteiro: Chad Hayes, Carey Hayes. Elenco: Vera Farmiga, Patrick Wilson, Lili Taylor, Ron Livingston, Shanley Caswell, Hayley McFarland, Joey King, Mackenzie Foy, Kyla Deaver, Shannon Kook, John Brotherton, Sterling Jerins, Marion Guyot, Morganna Bridgers, Amy Tipton. Duração: 112 min.

Terror é o meu gênero favorito. Desde, bem... sempre. A minha primeira paixão cinematográfica, inclusive, foi um improvável A Experiência, de 95. Há algo no gênero que não existe em nenhum outro: a maneira como as sensações são afetadas/conquistadas. Existe um sabor diferente em experimentar uma obra como O Gabinete do Dr. Caligari, com suas imagens inesquecíveis, um exemplar de Dario Argento, Wes Craven, Mario Bava, Carpenter, e a fórmula quase imortal que uma série de longas criaram ano após ano. James Wan, assim como eu, também é um completo apaixonado pelo cinema de horror e suas ramificações. Sua linguagem, seus realizadores, suas sequelas, artimanhas e passado – para o diretor, não é o que se cria, mas como você trabalha o que já foi criado, o segredo. O que poderia ser considerado original em 2013?! Wan une o que o espectador mais preza em uma estrutura típica – mansões mal-assombradas, exorcismos, investigadores paranormais, levitações, possessões, barulhos –, mas, muito mais do que isso, parece apreciar tanto quanto nós aquele mundo de caos.

Não há novidades em Invocação do Mal, afinal, mas um ápice do ambiente formulaico que os personagens estão inseridos. Começando pela atmosfera quase juvenil que embarcamos com o rosto de uma boneca possuída e os Warren explicando a origem maléfica da possessão: as expressões de choque de uma família assustada, as palavras deixadas pelo demônio e o foco no “olhar” do brinquedo. O fundo branco de um slide com os personagens em frente e a fusão para uma fotografia, aliás, adiciona algo singular para os créditos. Da mesma forma, James Wan segue em sua apresentação convencional de outra temática, a família chegando em uma nova casa mal-assombrada, o cachorro que pressente algo, a filha que não gosta da novidade, a casa imponentemente bela por fora, mas triste e desgastada por dentro (quase sufocante), e os primeiros acontecimentos sobrenaturais. Porém, ao mesmo tempo em que o diretor busca imprimir os aspectos conhecidos, ele nunca perde o estilo com que os demonstra – assim, observe o plano-sequência com o que nos põe na casa pela primeira vez e como só corta a sequência no instante em que um objeto para afastar espíritos ruins é visto. Igualmente, analise como a fotografia de John Leonetti evoca os tons claustrofóbicos que a narrativa passa a ganhar – destacando-se as cenas passadas no porão, a forma como o casarão passa a ter menos cor, a escuridão gradual e como consegue indicar o frio. O design de produção de Julie Berghoff também é competente em contrastar a mansão branca entre a vegetação densa.

Todavia, ao mesmo tempo em que o roteiro não nos surpreende com a trama geral, os irmãos Hayes – e juro que é difícil acreditar que estou dizendo isso – são eficazes em produzir as reais intenções por trás dos espíritos que rodeiam a família Perron: quem são eles e qual será a vítima (a mãe com os roxos no corpo ou as filhas que tiveram contato direto com eles?)? Outra coisa, os fantasmas estão com medo de outros, por isso se escondem? Além do mais, eles não se sentem tímidos para responder perguntas básicas de outros filmes, como os insultos a santíssima trindade e os três atos (infestação, opressão e possessão). Mais, o humor também é suficientemente sutil (“precisei ir ao banheiro”).

James Wan, por sua vez, continua ao mostrar seu talento na construção dos sustos com travellings certeiros e suas sequências internas – afora o esconde-esconde (“quer brincar?”) e os acontecimentos da madrugada, a melhor deve ser entre as paredes da propriedade. O diretor, ainda, inverte aos poucos o mundo dos protagonistas e captura nos enquadramentos uma sensação de instabilidade – quando entramos no porão, no terceiro ato, estamos de cabeça para baixo. Também percebe que o silêncio é mais importante que a trilha sonora invasiva: “Às vezes é melhor deixar o gênio na garrafa”.

Rendendo-se até mesmo aos antigos mitos ao indicar um lençol branco flutuando, James Wan junta o que o cinema de terror possui de melhor. Ao final, quando notamos a família em um círculo simbolizando a felicidade, acaba sendo um perfeito exemplo para um apaixonado que esperava há anos uma homenagem dessas.  


O esconde-esconde de James Wan
(A partir daqui, leia somente se já assistiu ao longa)

Uma das coisas mais agradáveis do terror é a linha genérica que carrega as homenagens aos grandes mestres antigos e a maneira como um diretor que possui conhecimento da linguagem explora as artimanhas que o gênero pode oferecer. Em um determinado instante de Invocação do Mal, por exemplo, observamos uma cena icônica para demonstrar as nossas ultrapassadas maneiras de assombrar as pessoas: por meio de um lençol branco. Uma coisa que parece previamente simples, mas que se torna muito significativa em todo o contexto proposto pelo diretor. Afinal, nós somos postos perante diversas referências do cinema clássico por toda a narrativa, o que torna a passagem do lençol até a janela de Carolyn (perceba, aliás, que é para onde o cachorro late na primeira noite antes de morrer e é a única iluminada em toda a casa – como se necessitássemos prestar atenção apenas nela) algo muito mais assombroso, pois representa a evolução do gênero: o que as histórias eram e o que o cinema as tornou. Uma simples sugestão de algo transparente e sem vida até o choque da aparência demoníaca.

Da mesma forma que Pânico, James Wan expõe de imediato o espírito na nossa primeira entrada no porão (note que a sua forma é evidenciada passando ao lado de Roger iluminado por um fósforo), como se quisesse nos dizer que já havíamos visto tudo aquilo antes e não há motivo para tardar essa exposição. Assim como o relógio parado às três horas e sete minutos, descrito de maneira importante na historia – a morte da primeira proprietária das terras foi nesse horário –, mas que já havíamos visto em Amityville, O Exorcista, Desafio do Além, A Mansão Macabra (o próprio relógio da casa lembra o do filme), entre outros. As homenagens presentes nos dois primeiros atos, aliás, são interessantíssimas: Poltergeist é óbvio quando vemos a estática na televisão; O Exorcista na maneira expositiva das sequelas físicas; Os Pássaros é outra referência clara ao visualizarmos eles tentando invadir a casa, que possui uma espécie de ímã; o corredor da casa tem muito de Psicose; as vozes de A Casa Amaldiçoada; a boneca de Dolly Dearest; o lago de Amityville; a névoa ressaltando o terror que aos poucos invade a tela, A Bruma Assassina; além do terror circense que pontualmente aparece como lembrança no museu de horror da família Warren e na caixa de música de Rory que recorda as tendas de um circo.

Além do mais, os espíritos tendem a ter motivos particulares acerca de suas mortes, mesmo que elas façam parte de um mesmo ritual satânico. Rory, por exemplo, é um garoto que não possui qualquer tipo de aura maléfica. Ele deseja proteger sua nova amiga, pois sabe do que o demônio é capaz. Os próprios espíritos agem de maneira diferente e têm medo de Bathsheba. A menina sonâmbula é guiada por Rory, pois ele tenta a levar para seu esconderijo – não é algo gratuito. O armário, igualmente, é filmado por Wan com uma certa imponência (de baixo para cima), pois é quase inatingível. Enquanto isso, a mãe já passa a ser utilizada como o receptáculo do demônio, ela é levada a chamá-lo – o piano, convencionalmente utilizado em outras décadas para provocar pavor, é tocado por Carolyn três vezes; os mesmos três acordes que são usados para chamá-la no porão. É um belo jogo de xadrez entre investigadores paranormais e espíritos: analise, por exemplo, a maneira como a felicidade é destituída daquela residência, começando pelas cores que vão desaparecendo pelo lado de fora e os quadros sendo jogados ao chão, para depois provocar um desgaste na mãe das crianças, que sofre por ver suas filhas assustadas e a sua impotência diante sua “doença”. O pai é o cético, óbvio. Não sabe o caminho para seguir. A primeira vez que entra na casa e vê a situação no seu novo lar, ele pergunta quem está lá. Quem entrou na casa para machucar a sua família. Não sabe a dimensão do perigo. A natureza da sua dor é verossímil: possui uma família de sete pessoas, gastou todo o seu dinheiro numa propriedade que os quer morto (meio sarcástico ela ter sido sorteada pelo banco, certo?!), sacrifica-se pelo conforto de todos ao aceitar serviços pela metade do preço e se vê impotente numa sociedade machista dos anos 70. As filhas, por sua vez, contém seus próprios problemas. A mais velha se preocupa com as mais novas, mas ela não queria ter ido para a casa de início. Sente-se triste ao ver o sofrimento das irmãs, que são assombradas individualmente pelos espíritos (o olhar perdido de uma delas quando vê alguém na escuridão do quarto é comovente).

Mais, James Wan também versa com a racionalidade de muitos casos – algo que outros filmes do gênero também já fizeram – e aponta para os nossos medos juvenis, principalmente: armários, quartos escuros, mansões mal-assombradas, pés sendo puxados de noite, barulhos incômodos, trovoadas, a presença dos espíritos sentida pelo frio, bruxas, etc. Vale salientar que até o tom documental adquirido pela câmera subjetiva dá as caras, oferecendo os temores de algo mais moderno. Mas mais do que isso, Wan indica seu talento claro para o terror ao produzir sensações interessantes pelos seus planos: afora a câmera invertida vista em dois momentos, observe o controle de seus travellings – seja na passagem pelos cômodos da casa na instalação das câmeras ou quando a personagem de Farmiga (os tiques da atriz com a mão são fantásticos) desce ao porão para sentir a presença de fantasmas no local –, a maneira como faz sua câmera se aproximar nas cenas mais tensas e, num dos melhores enquadramentos do longa, quando focaliza Carolyn conversando com outros personagens pelas divisórias de uma janela, após ter sido possuída. Neste caso, avalie que, além dela ser a última a se levantar para socorrer o policial, a divisória a enquadra separada dos demais – como se, de fato, não pertencesse mais àquele grupo. Não há como esquecer, ainda, o brilhantismo com que o diretor pensa sobre a chegada dos Warren na casa dos Perron – para isto, basta analisar a mudança feita de uma lente para outra a fim de registrar uma crescente profundidade de campo que mostra que a casa está tentando se distanciar daqueles “inimigos”.

E é retomando o mesmo jogo que sempre fez parte das brincadeiras da família, um juvenil esconde-esconde, que o diretor finalmente assume o seu terceiro ato com uma adorável coesão: já que o jogo que foi se intensificando cada vez mais culminou numa desgastante perseguição de mãe e filhas no clímax. Depois de prestar homenagens no ótimo Sobrenatural para o cinema setentista, agora o diretor é mais atrevido ao explorar vários tipos de gêneros que mereciam a lembrança. Com isso ficando de lado, eu mal posso esperar por uma obra totalmente original de James Wan.  

                                

13 de setembro de 2013

Rush: No Limite da Emoção

Rush, EUA/Alemanha/Inglaterra, 2013. Direção: Ron Howard. Roteiro: Peter Morgan. Elenco: Chris Hemsworth, Daniel Brühl, Natalie Dormer, Olivia Wilde, Pierfrancesco Favino, Alexandra Maria Lara, Joséphine de La Baume, Christian McKay, Tom Wlaschiha, Patrick Baladi. Duração: 123 min.

Poucos filmes capturam de forma sensível o duelo travado por dois esportistas apaixonados como Ron Howard faz em Rush: No Limite da Emoção. A busca pela satisfação, pelo equilíbrio pessoal e, por ao menos um minuto, ser reconhecido como um ser humano raro: um campeão mundial. Em um dos melhores filmes de sua carreira, Howard já denuncia o duelo entre os pilotos Niki Lauda e James Hunt no grid de largada. Hemsworth, que interpreta o piloto inglês, surge nos refletores, flashes e rodeado de fãs; enquanto isso, um tímido Brühl aparece concentrado dentro da única coisa que importa para ele, o seu carro. Embora também se preocupe em criar a adrenalina que uma corrida contém, na rapidez com que mostra o motor, as rodas, o acelerador e a pista molhada, o diretor insiste na divergência psicológica dos dois principais pilotos da fórmula um de 76 e suas respectivas vidas influenciando em suas carreiras.

Escrito pelo interessante Peter Morgan, o roteiro acompanha a rivalidade entre dois dos maiores pilotos da fórmula um nos anos 70 e o auge dessa disputa, quando ambos têm chances de ser campeão mundial. Entre riscos profissionais e pessoais, os dois constroem diferentes carreiras que ganharão, igualmente, futuros díspares.

E é bastante claro que o duelo almejado por Howard é a rebeldia tão bem quista no esporte contra a disciplina e o pragmatismo – algo que nem o tempo conseguiu apagar nas discussões envolvendo o automobilismo moderno: a mecânica do carro versus a paixão e a igualdade de talento. A própria batalha já inicia até mesmo na forma como os dois são expostos: narrações em off distintas. O foco é no nome dos carros dos pilotos, não na máquina em si. Assim, o diretor aponta para a política e o duelo nos bastidores entre os dois, mas prefere abordar mais as vidas complexadas de Lauda e Hunt. Por outro lado, Howard encontra dificuldades em fugir da abordagem comum em determinados instantes: ele indica o GP do Brasil como uma grande festa de samba e carnaval, colaborando com uma visão antiquada; sublinha cenas tolas no primeiro ato apenas para fazer um contraste entre aceitação familiar e vida profissional; além das cenas embaraçosas envolvendo as transas ocasionais de Hunt.

Mas isso é pouquíssimo se comparado aos acertos que a narrativa possui. Observe, por exemplo, a reação do piloto inglês ao saber de um piloto morto e a avaliação oposta de Lauda – denunciando uma complexidade moral dos dois pela primeira vez. O carinho que um tem pelos companheiros e o esporte, enquanto o outro concentra na técnica (“a culpa foi dele”). Além disso, a maneira como é apresentada esse conflito colabora ainda mais para a reunião no final do segundo ato e as consequências nas decisões tomadas. Aliás, o acidente enquadrado de cima e o temor disciplinar de Lauda com seus 20% só colocam mais tensão na angustiante batida. Sem esquecer de destacar o jogo de foco utilizado no retorno de Niki às pistas.

Todavia, fica no encargo de Hemsworth e Brühl transformar aquelas pessoas em figuras complexas e genuínas – algo bem alcançado. A rivalidade que vira respeito. Como Proust e Senna. O jovem Chris Hemsworth, que havia indicado potencial em Thor, agora vira uma afirmação. É dele o filme. Seja num sorriso rápido demonstrando uma afeição que antes não era vista ou sua preocupação com o que mais ama: o automobilismo. Mas a arrogância com que Brühl desenvolve seu Lauda não fica muito atrás. É com ele as cenas mais memoráveis do filme – a volta às pistas e o seu discurso final. Seu personagem não possui amigos, trata o casamento como assunto familiar e acha a felicidade uma inimiga. Sua força de vontade nasce de um destino inesperado, o que sempre foi contra a sua filosofia. Ambos são ambíguos. 

Prolongando um pouco mais do que o necessário o seu terceiro ato, mas mantendo sua sensibilidade até o fim, Howard realiza um dos melhores filmes sobre a fórmula um e o automobilismo recente – focalizando em apenas dois apaixonados. Num duelo tão brilhantemente travado por atores e pilotos, caso retornemos ao ano retratado, não é à toa que ambos os carros terminem lado a lado o fim do espetáculo. 

                              

10 de setembro de 2013

Jobs

jOBS*, EUA, 2013. Direção: Joshua Michael Stern. Roteiro: Matt Whiteley. Elenco: Ashton Kutcher, Dermot Mulroney, Josh Gad, Lukas Haas, Matthew Modine, J.K. Simmons, Lesley Ann Warren, Ron Eldard, Ahna O'Reilly, Victor Rasuk, John Getz, Kevin Dunn, Nelson Franklin, Eddie Hasell. Duração: 128 min.

Se há uma mensagem evidente em Jobs é que estamos diante de um líder. Um messias. Alguém que transformará a tecnologia como conhecemos e aperfeiçoará sistemas de armazenamento até caminhos antes impensáveis. Steve Jobs inicia o longa-metragem caminhando de costas para a câmera, como se o espectador não fosse digno de visualizar – não ainda – a figura que conheceríamos em instantes. Não nos aproximamos de sua imponência, e uma série de cortes rápidos afastam o nosso primeiro contato. A trilha sonora também assinala os tons épicos da narrativa. Ashton Kutscher, que é agraciado por uma bela e sutil maquiagem, recebe os aplausos de pé ao demonstrar o Ipod pela primeira vez. O jeans, a aparência jovial, os tênis, os gestos e os refletores estão lá. Tudo está em seu devido lugar, mas a voz de Jobs pertence a um homem que está em seus 35 anos. E esse é o maior problema do filme de Joshua Michael Stern (Promessas de um Cara de Pau): a aparência ou a presença do seu personagem-título é mais importante do que o que lhe compõe.


Jobs não sabe que tipo de filme quer ser. É sobre a vida de Steve Jobs? A construção da Apple? O ápice da empresa? Os problemas de relacionamento que ele possuía com quem o rodeava? Sua solidão? A desconstrução de um mito? O diretor não se limita a fazer uma burocrática autobiografia, pensa em trazer a aura pop de filmes como A Rede Social ou Johnny e June, mas acaba se perdendo como uma das amizades de Steve. A diferença entre Zuckerberg e Jobs está na forma como a narrativa se desenvolve e nos envolvidos nela, não em quem possui uma história mais cinematográfica do que o outro. Falta profundidade em Jobs. Embora seu relacionamento agressivo com a ex-namorada e a filha que demorou para aceitar (mas colocou o nome dela em seu principal projeto) seja sublinhado, o roteiro somente se arrisca a brincar com a maneira quase divina que o sujeito é visto atualmente: “Jesus? Não, é o Steve”. Falta para o diretor saber que um quadro de Einstein pendurado em uma casa não aponta para a inteligência de uma pessoa e a maquiagem não esconde os problemas do roteiro.

*Crítica publicada originalmente no Diário Catarinense.

5 de setembro de 2013

Depois de Maio

Après mai, França, 2012. Direção: Olivier Assayas. Roteiro: Olivier Assayas. Elenco: Clément Métayer, Lola Créton, Carole Combes, Felix Armand, India Menuez, Hugo Conzelmann, Mathias Renou, Léa Rougeron, Martin Loizillon, André Marcon. Duração: 122 min.

Todos passamos por momentos de simples rebeldia na nossa adolescência ou juventude. É algo natural e que nos molda a ser o que nos tornamos no futuro. Nossas experiências juvenis acabam sendo o fator desencadeador para uma vida desiludida e lamentada ou o precursor de tornar aqueles nossos sonhos impensáveis em realidade – relacionamentos, ideais, caráter, o que seja. O futuro, logicamente, é um reflexo do passado. Nessa linha de raciocínio que o diretor Olivier Assayas inicia o seu novo longa-metragem, Depois de Maio. Gilles, afinal, é um garoto normal da década de 70: confronta o sistema, experimenta drogas, ouve seus discos favoritos, mantém as esperanças na comunicação livre, reivindica melhores condições para a população e disputa território com a brigada. Basta saber o que o personagem de Métayer tirará dessas resoluções e como guiará sua vida daqui por diante – e é aí que observamos a melancolia presente no filme.

O nosso protagonista é um estudante supostamente aplicado, mas assim que sai da aula (ou do sistema) vai para a rua vender o “único” jornal honesto da região, O Tudo – o nome não poderia ser melhor. Ele frequenta manifestações, passa a ser caçado pela polícia que ataca com cassetetes, bombas de gás, balas de borracha e massacra qualquer sinal de rebelião, pega dinheiro de seus pais para comprar outros jornais, discute política e diretrizes nas reuniões de estudantes, apaixona-se por diferentes pessoas, experimenta, troca beijos escondidos; é um garoto procurando, como todos nós, o seu lugar no mundo. Cabe destacar, aliás, o cenário criado por Dorota Okulicz que apresenta o quarto de Gilles com inúmeros quadros, posteres e fotos espalhados – inclusive uma cruz de cabeça para baixo pintada em um folheto para sublinhar o seu ar revoltoso.

A direção de Assayas, da mesma forma, evidencia esse clima juvenil nas reuniões – note, por exemplo, as rodas de violão, as festas ou eventos mais sérios de discussão – e como é passado uma sensação de instabilidade adequada. Seu domínio e segurança, ainda, são vistos quando os jovens chegam de moto em sua escola para a pichação e, sutilmente, a câmera é deslocada minimamente para cima. Além do mais, administra os contornos tristes que a narrativa assume como se estivesse escrevendo uma autocrítica. Neste caso, analise a forma com que a arte se desenvolve: primeiramente é um sinônimo de rebeldia, os periódicos são utilizados para suas vozes, o cinema é um retrato da realidade, com cadeiras nas ruas e empolgação; após esse primeiro momento, a arte não é mais a mesma, também adentrou ao sistema capitalista que eles não acreditavam. De vários amigos que participavam da construção de um jornal ou panfletos, e o mimeógrafo à manivela, Gilles vira uma figura solitária olhando para a máquina girar, e até o cinema sofre com a chegada das grandes salas e a indiferença do público (“O que achou do filme? Nada”). Em contrapartida, a montagem do falecido Luc Barnier é sem inspiração e embaraçosa em determinados instantes, como aquele em que uma personagem aparece lendo uma carta ou no insistente fade in e fade out para as passagens de tempo. Ao mesmo tempo, os atores carecem de sensibilidade – a sentença de Laure “Eu não quero que você me veja partir” perde completamente a força pela repressão dos seus sentimentos naquele momento e sua corrida tola.

Por outro lado, o figurino de Jurgen Doering para Gilles é inteligentíssimo ao equilibrar as cores conforme a narrativa cresce. Veja que o personagem começa com uma camisa com diferentes tons de tinta, retratando sua imaturidade e indecisão, e, quando se despede da namorada, ele prefere um casaco mais escuro, começando a se desprender de sua juventude. Contudo, durante a pichação, volta a usar a camiseta para destacar rebeldia. Como se não fosse o bastante, o relacionamento com Christine também é um interferente: utiliza roupas mais sociais, listradas ainda, mas mais sólidas, algumas com estampa, e contrapõe as cores claras dela – principalmente quando ambos trilham caminhos díspares. E apesar das roupas possuírem um ar de maior sofisticação, indicando a experiência adquirida, Gilles coloca um amarelo espalhafatoso no escritório de seu pai, afirmando que não é daquele lugar e está deslocado. Ainda não está pronto para o sistema.

É nessa reflexão temporal envolvendo juventude, ideais, trabalhos e frustrações que está o charme do novo filme de Assayas. Mesmo Gilles, que ainda não tem ideia de seu futuro, é um caso raro na realidade desregrada de seus amigos (“Você tem sorte. Sabe o que vai se tornar!”). E, embora não saibamos de seu destino, torcemos para ele ter acertado o caminho tomado.  

                            

3 de setembro de 2013

O Casamento do Ano

The Big Wedding, EUA, 2013. Direção: Justin Zackham. Roteiro: Justin Zackham, baseado no roteiro de Jean-Stéphane Bron e Karine Sudan para o francês Mon frère se marie. Elenco: Robert De Niro, Diane Keaton, Susan Sarandon, Katherine Heigl, Amanda Seyfried, Topher Grace, Ben Barnes, Robin Williams, Christine Ebersole, David Rasche, Patricia Rae, Ana Ayora, Kyle Bornheimer, Megan Ketch, Christa Campbell. Duração: 101 min.

Uma das coisas mais divertidas ao se indagar ao final de uma sessão como O Casamento do Ano é se o diretor/roteirista realmente acredita no trabalho que está entregando. Uma pessoa, por exemplo, que vive ainda em uma época cômica perdida, onde desmaios eram frutos de gargalhadas e aplausos ou que brincadeiras com nomes ainda estavam em alta. Pois fazendo piadas com virgindade, controle de natalidade e inferno como se fossem tabus, Zackham comprova eficientemente que sua estreia na direção, com Calouros em Apuros, não havia sido um erro de percurso e é dono de uma expressiva falta de talento.

Escrito pelo próprio Zackham, baseado no roteiro do original francês, a história acompanha o relacionamento de uma família disfuncional que se vê diante do casamento de um dos familiares, o filho adotivo (e não duvido que há uma tentativa de piada aqui). Porém, com a vinda da mãe biológica (!!) do noivo para o grande evento, os seus pais adotivos devem fingir por um final de semana que ainda estão casados e...

… assim nós somos agraciados com uma quantidade interminável de piadas infames citando adultério e inferno durante toda a narrativa. Ao mesmo tempo, Zackham pensa que um padre brincalhão é uma novidade (interpretado por um Robin Williams que, vivendo em décadas passadas, é o sinônimo da graça esperada pelo diretor), que cada cena necessita começar por alguma piada, que uma menina chamando o pai pelo nome aponta para um afastamento familiar profundo, pessoas bebendo álcool direto da garrafa é sinal de vulnerabilidade e gags visuais como desmaios são marcantes. Há de se destacar, igualmente, a fantasia juvenil doentia do diretor ao colocar uma irmã colombiana pedindo para o irmão americano mostrar o seu país e, consequentemente, fazer sexo com ela. É cômico, ainda, como o diretor sabendo que não existe uma trama para continuar sua “história” coloca a personagem de Sarandon novamente para...bem, para criar conflitos que ocasionarão as resoluções no terceiro ato.

Destacando-se como a maior tragédia do elenco, Katherine Heigl consegue manter sua carreira no fundo do poço ao criar uma personagem estúpida dramaticamente: surgindo sempre com um olhar perdido e suspiros pontuais, a atriz desmaiando ao ver filhos (é necessário repetir) deve ser uma das cenas mais involuntariamente engraçadas do ano e seu refluxo ao ver uma criança para demonstrar seu estado de espírito diz muito. E enquanto Sarandon, Williams e Keaton se limitam a estar em tela, De Niro continua se esforçando para matar de vez sua carreira.

Buscando arrancar graça de incesto (“se isso a faz melhor, o meu irmão está fazendo sexo com minha irmã em algum lugar”) e, como toda obra sem inspiração do gênero, jogando seus personagens na água ao final de tudo, Zackham mostra tanto talento para uma tragédia cômica que adoraria que seu nome fosse anunciado em um próximo filme apocalíptico. Ao menos haveria o consolo que a terra estaria acabando e não precisaríamos aguentar os personagens construídos por ele durante muito tempo.