13 de dezembro de 2013

Azul é a Cor Mais Quente

La vie d’Adèle, França/Bélgica/Espanha, 2013. Direção: Abdellatif Kechiche. Roteiro: Abdellatif Kechiche e Ghalia Lacroix, adaptado de uma HQ de Julie Maroh. Elenco: Adèle Exarchopoulos, Léa Seydoux, Salim Kechiouche, Aurélien Recoing, Catherine Salée, Benjamin Siksou, Mona Walravens, Alma Jodorowsky, Jérémie Laheurte, Anne Loiret, Benoit Pilot, Sandor Funtek, Fanny Maurin, Maelys Cabezon, Samir Bella. Duração: 179 min.

De alguma forma, todos nós carregamos cicatrizes de relacionamentos passados. De diferentes maneiras. O primeiro relacionamento, por exemplo, geralmente é composto por um amor que ultrapassa o limite do saudável – talvez, por ser o primeiro – que, quando notamos que a relação se desgastou ou ficou vazia, nós ficamos sem chão: não sabemos aonde ir ou até mesmo o que buscar. A paixão ilimitada que o primeiro amor gera é, talvez, uma das coisas mais definidoras de nossa vida. Não é diferente para Adèle, que tem um agravante: a sua incompreensão sobre os próprios desejos sexuais. E é assim, caminhando de maneira profunda por interpretações sobre preconceitos sociais, isolamento familiar, liberdade e o primeiro relacionamento, que Abdellatif Kechiche constrói uma obra romântica ao mesmo tempo que melancólica.

Escrito por Abdellatif Kechiche e Ghalia Lacroix, baseados na HQ de Julie Maroh, a história acompanha a vida de uma moça chamada Adèle, que, nos últimos anos na escola, descobre que sente atração por outras meninas. Ela se apaixona à primeira vista por uma mulher de cabelos azuis, que passa a representar perfeitamente o sentimento revoltoso que ela possui com o mundo, e começa a enfrentar as consequências da vida que escolheu.

É, aliás, nos tons azuis dos cabelos de Emma que podemos observar a maturidade de Adèle com suas próprias escolhas e a direção traçada. Se em um momento observamos a garota se masturbando pensando nos toques da pessoa que vira na rua, noutro, o diretor passa a indicar o azul que passa a tomar conta de sua vida aos poucos: com a aceitação de sua própria liberdade. No começo do longa-metragem, por exemplo, Kechiche explora as reações e a maneira como os personagens agem perante as situações inseridas (dia a dia, relacionamentos, escola), a própria aula de literatura demonstra o clima descompromissado digno da juventude e a maneira como Adèle se comporta com a família também ressalta esse ponto. Perceba, sob esta ótica, a forma como a protagonista e os pais costumam conversar: só durante as refeições e com poucas palavras, o restante do tempo ela está em seu quarto. Não que seja sufocada por seus familiares, mas ela se sente deslocada, não exibe felicidade alguma e não acha que alguém entenda seus problemas pessoais – o que torna tudo muito empático.

Assim, quando visualiza uma figura destoante do resto do mundo em Emma, Adèle se sente fascinada por, enfim, achar alguém que como ela não está enquadrada naquela realidade típica. Apaixona-se pelo que a outra representa para ela, muito além dos próprios desejos sexuais. Começa a gostar de si mesma. E isso é facilmente verificado no decorrer da narrativa, com as mudanças no figurino e da cor azul mais acentuada em sua vida: veja que depois da masturbação, um travesseiro branco com detalhes azuis surge em seu quarto, o término dela com um garoto é feito em um banco azul, o cachecol que ela usa tem os detalhes nessa cor, a caixa de correio, o pôster em seu quarto, a fumaça do sinalizador ou o casaco azul durante uma passeata, a boate em que se apresenta para Emma, a colega que beija usa um anel e esmalte azuis, a sua mochila, assim por diante. É, ao mesmo tempo, interessante notar que Adèle evita denunciar essa mudança por medo da reação de seus colegas, o que culmina em duas cenas intensas: numa delas, ela deixa seus amigos para encontrar Emma, deixando claro que finalmente descobriu o que tanto procurava; enquanto, noutra, ela é cercada pelas colegas que viram a cena e tratam-na como se fosse outra pessoa. E é belíssimo notar a crítica e a mudança de “status” que uma pessoa sofre apenas por ser julgada como diferente, além do fato de Kechiche apontar que existem outras jovens reprimidas ali.

Da mesma forma, como o nosso ponto de vista é limitado aos sentimentos da protagonista, o diretor também ressalta a atmosfera familiar de Emma e Adèle. Como esta não costuma conversar com seus próprios pais, admira a forma como as confidências são trocadas por Emma, seu padrasto e sua mãe, o que gera um beijo dúbio entre as duas em determinado momento, num close eficiente – analise o desconforto de Adèle com o beijo perante outras pessoas. O tom muda, pois a estabilidade e o conservadorismo da família de uma foram trocados pela liberdade e sonho doutra. Fica intrigante compreender, porém, que a infelicidade de Adèle ainda está presente nos encontros futuros com amigos de Emma. Ela ainda é uma pessoa frustrada, deslocada nas conversas sobre arte, o que a retorna ao seu passado. Além disso, a câmera segura de Kechiche nos deixa próximos de seus personagens durante boa parte do tempo, o que faz com que sintamos a emoção de cada um deles e traga uma natureza intimista e natural para as cenas de sexo.

Sequências que são brilhantemente executadas sem pudor algum por Lea Seydoux e Adèle Exarchopoulos. Enquanto Emma é alguém que se encanta pela perdição de Adèle da mesma maneira que se afasta, Exarchopoulos compõe sua personagem de forma irretocável: desde a forma como passa a insegurança sobre o suposto interesse por um rapaz do colégio, passando pelo tique que possui de levantar a calça para ninguém a medir sexualmente, até a maneira como ela deixa os cabelos mais rebeldes para um garoto não sentar do lado dela no ônibus. Interessante perceber que a cor preta presente nas salas de aula só não é total, pois a fachada da porta apresenta a mesma tonalidade que a fez se apaixonar por Emma – como uma lembrança. Igualmente, a sua emoção à flor da pele é bem administrada por evidenciar que se Emma a deixasse, ela retornaria ao princípio, longe de ser quem gostaria de ser e tão submersa quanto se sentia na adolescência. O grito desorientado não é totalmente o de amor, mas o de não saber o que a espera lá fora. Não conhecia outra realidade a não ser aquela. Mesmo que a cena lindíssima no final retome a mesma paixão que fizeram as duas se entregarem tão intimamente, onde elas se complementam num choro calculado – ao passo que uma lágrima rola na face direita, a outra desce pela face esquerda.

Embora Kechiche seja dramático em excesso ao final, por proporcionar um reencontro somente para afastar a felicidade da vida daquelas personagens mais uma vez, Azul é a Cor Mais Quente é aquele raro exemplar que aparece de tempo em tempo no cinema e provoca reflexões profundas numa estrutura aparentemente simples. A vida aqui seria a de Adèle, mas poderia ser qualquer outra.


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