29 de janeiro de 2014

Frankenstein: Entre Anjos e Demônios

I, Frankenstein, EUA/Austrália, 2014. Direção: Stuart Beattie. Roteiro: Stuart Beattie, baseado na Graphic Novel de Kevin Grevioux e nos personagens de Mary Shelley. Elenco: Aaron Eckhart, Yvonne Strahovski, Miranda Otto, Bill Nighy, Jai Courtney. Duração: 92 min.

Querida Mary Shelley,

Perdoe-me pela intimidade atrevida, mas não imagino começar esse pedido de desculpas não sendo desta forma. Em breve fará 200 anos que o seu primeiro romance, Frankenstein, foi lançado ao mundo. Uma obra que, não seja modesta, revolucionou para sempre como os “monstros” eram enxergados na sociedade. Como cita a sua obra-prima: “inventar, deve-se admitir humildemente, não consiste em criar algo do nada, mas, sim, do caos”. A arrogância humana de Victor Frankenstein evidencia esse seu ponto. Até onde iríamos para provar que podemos superar a vida? Ou, melhor, a morte! A ânsia de desvendar – cito-lhe novamente – os mistérios da criação: algo sempre tão almejado pelo homem. Possivelmente, a senhora não saiba, mas a sua obra foi inúmeras vezes “reinventada” para o cinema. Como não poderia deixar de ser, portanto, observamos o que de melhor e o que de pior os seus escritos geraram. Não, não foi o curta-metragem de 1910 que começou a gerar esse fascínio pela história de Victor e sua criação, mas o filme com Karloff, o de 31. Ainda que, em minha modesta opinião, o filme de 1935 (A Noiva de Frankenstein) seja o projeto que mais se aproxima da sua sensibilidade.

Mas talvez esteja fugindo do assunto. Não estou aqui para lhe afirmar o que já sabe. E se você estiver lendo essa carta, certamente, possui este conhecimento. Estou aqui para lhe pedir desculpas, ainda que minha voz não possa responder pelos envolvidos em Frankenstein: Entre Anjos e Demônios, novo filme baseado em seu livro. Shelley, eu não sei o que as companhias Lakeshore e Hopscotch tinham nos pensamentos ao apoiarem o projeto de Stuart Beattie para reinventar a sua obra. Minto. Eu tenho, sim. A resposta é o óbvio dinheiro fácil, mas não quero que pense que o mundo de caos visualizado por ti é o mesmo pelo qual lhe mando esta carta. Sei que pode indagar por que nós deixamos isso acontecer e, você está certa, assumo que falhamos. Pior, minha cara, compramos a ideia. Demos razões a eles em continuar investindo nessa escola de atualização das fábulas clássicas. Mas em nossa defesa, como saberíamos que Stuart colocaria gárgulas em sua história ou uma divisão maniqueista de céu e inferno que, na minha tese, nunca foi sua intenção?! Espero que na próxima vez, pois haverá, estejamos prontos para perceber, quando o roteiro disser que o diário de Frankenstein não pode cair nas mãos erradas, o que a expressão “mãos erradas” realmente quer dizer: as de diretores como Stuart Beattie.

Prefiro não lhe aterrorizar mais com esses escritos, pois você merece gozar de uma suposta paz em seu epílogo próprio. O propósito disso é revelar que ainda temos você nos pensamentos e, novamente, pedimos desculpas pela mesma humanidade que você acertadamente julgou conhecer tão bem.

De seu admirador,

O autor.


Obs: Aliás, sei que não tens nada a ver com isso, porém, caso esteja no mesmo lugar que os irmãos Grimm, os meus pedidos de desculpas são estendidos a eles.

23 de janeiro de 2014

O Lobo de Wall Street

The Wolf of Wall Street, EUA, 2013. Direção: Martin Scorsese. Roteiro: Terence Winter, baseado no livro de Jordan Belfort. Elenco: Leonardo DiCaprio, Jonah Hill, Margot Robbie, Kyle Chandler, Matthew McConaughey, Rob Reiner, Jean Dujardin. Duração: 180 min.

Aqui é a América”: esta é a frase que marca a trajetória de Jordan Belfort pelo império de ações norte-americano. Um ambiente depravado, onde a ganância, o animalesco (a referência ao filme Monstros é oportuna), o poder, o vício e a corrupção são fatores imprescindíveis para ser um vencedor. Lugar em que apenas o sexo e as drogas nos mantêm vivos; que a infância não é importante, somente o que temos agora. Afinal, na narrativa de Scorsese, o que importa para Belfort são os vícios da ilegalidade, o glamour, as festas, os champagnes e, lógico, o dinheiro que conseguimos por fora. A malandragem fiscal. Mas, muito mais do que isso, o diretor trata o protagonista como uma espécie de pastor. Belfort é um pregador. A sua missão é levar para seus subordinados o quanto eles podem ter tudo e ser felizes como ele. “Não há nobreza na pobreza. Lide com os seus problemas sendo rico”, assegura. Para o empreendedor, o dinheiro compra tudo. Oferece a libertinagem requerida quando se é jovem. Belfort tenta encantar uma moça que chega acompanhada em sua festa, transa em uma cama de dinheiro, o seu funcionário se masturba em público; nada é limitado para aquele círculo. O que não é fruto de compra só não teve a oferta certa.

Não que Scorsese incite esse comportamento, muito pelo contrário. O Lobo de Wall Street é um drama cínico. E é em seu cinismo que expõe os pensamentos grotescos dos mantenedores da Stratton Oakmont. Seja como o casamento e a felicidade ou alguém com alguma imperfeição física são visualizados: a brincadeira com um anão e o personagem de Jonah Hill (excelente) falando como se livraria de um filho com necessidades especiais são claros exemplos. Somos, enfim, guiados por aqueles personagens àquele mundo. Di Caprio, em sua melhor atuação, como o biografado, é o narrador. Conecta-nos aos seus problemas e façanhas desde o princípio. A narrativa é influenciada por suas lembranças. Fala da vida como se ela não fosse importante. Não mais que o dinheiro, como o clímax denuncia. Scorsese deixa a América mais uma vez sob a ótica de um capitalismo selvagem, como em Cassino. Utilizando-se de símbolos para designar essa esfera, o leão no escritório, aproveita o silêncio e o exagero como nenhum outro – chegando ao ápice na sequência com o efeito colateral do quaaludes. Como vender algo? Scorsese sabe como ninguém.

· Crítica originalmente publicada no Diário Catarinense

17 de janeiro de 2014

Ninfomaníaca - Volume 1


Nymphomaniac, Dinamarca/Alemanha/França/Bélgica/Inglaterra, 2013. Direção: Lars Von Trier. Roteiro: Lars Von Trier. Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Stacy Martin, Shia LaBeouf, Christian Slater, Connie Nielsen, Uma Thurman. Duração: 122 min.

De certa forma, é estarrecedor acompanhar os primeiros segundos da nova obra do dinamarquês Lars Von Trier, pois apenas há o silêncio e a escuridão. Como se não houvesse mais nada. Uma extensão do vazio final de Melancolia, seu último longa-metragem. Novamente, o estado de espírito da protagonista nos imerge para a narrativa. O barulho da chuva, as gotas da água que caem, as passagens por detalhes do concreto, as extensões do beco em que vemos Joe pela primeira vez – nada é gratuito. Muito menos o corte abrupto da ausência de som para um heavy-metal. Ali, naquele local, está alguém que vive uma vida à flor da pele, radical, mas que está ferida. E não apenas fisicamente. A música nos tira do estado catatônico. Nos traz para a realidade. O beco, igualmente, é distante de nossa vista, como se fosse importante que ele estivesse longe de nosso dia a dia. Uma prisão para quem o ocupa.

É desta maneira que Von Trier já nos fisga desde seu primeiro take. Sua personagem afirma que a dor é possível, mas não importa. A história, sim. E é para ela que damos nossa atenção quando Joe (Charlotte Gainsbourg) invade a vida de Seligman (Stellan Skarsgärd) e narra a sua vida sexual.

É a forma como a personagem enxerga o contexto a sua volta que nos importa e não o que a cerca. Assim, o lugar em que ela segue Seligman nos remete a um ambiente religioso, como se fosse um confessionário – e, aliás, basta notar a própria divergência dos dois em relação as suas posições para analisar essa diferença: o analista e o "doente" ou o padre e o fiel.

Ao mesmo tempo, diferente de Melancolia, a visão social pretensiosa não é aderida pelo diretor, e sim o ponto de vista pessoal. Portanto, se antes não encontrávamos solidez o suficiente para afirmações como: "a terra é má"; neste caso, Joe dizer que é um péssimo ser humano não é algo deslocado, pois, afinal, é a visão dela sobre si mesma: "Não são todas as crianças, era só eu!".

Do mesmo modo, Von Trier não se limita ao expor a sexualidade infantil, o que pode gerar algum debate: desde brincadeiras na água até o uso de uma corda entre as pernas. Por outro lado, a metáfora, um de seus maiores artifícios como realizador, acaba sendo explicativa demais e não nos dá oportunidade para pensarmos por nós mesmos.

O sentido bíblico do pescador, por exemplo, é logo abafado para uma série de paralelos e contrapontos cômicos que não funcionam como deveriam. Além disso, como algo inacabado, algumas sequências denotam excesso – como aquela em que um homem abandona a família para ficar com Joe e sua esposa passa a constrangê-los ou o melodramático capítulo em que Joe reencontra seu pai. Aliás, o dinamarquês insiste em destacar a falta de sentimento de sua protagonista, algo que se torna cansativo e desnecessário.

Entretanto, o cineasta caminha por uma estrutura cômoda para ele e isso é bem claro durante o percurso: a sutileza com que o desabrochar da natureza, as árvores, o sopro do vento, os barulhos, as sensações e a forma como Joe fala de seu pai sugerem um incesto é perfeita; a câmera se afastando dos dois para demonstrar o exato instante em que Seligman passou a julgá-la também aponta o seu talento; a lâmpada em cima de Joe denunciando uma espécie de aura sendo investigada, idem; ou como a falta de envelhecimento do pai e a decadência da mãe em um ambiente preto e branco, que surge pertinente, revelam a interferência das lembranças. "O amor distorce!".


Como se não fosse o bastante, a sexualidade masculina também encontra sua avaliação. A insegurança e a ingenuidade que nos cerca quando o prazer é proporcionado a outro – algo que num contexto social não conseguimos autoexperimentar – é o mais completo exemplo.

Para Von Trier, o sexo é exato. Não humano. Existe a matemática por trás do prazer, como uma sequência de sexo e números nos indica. Assim sendo, não é difícil perceber a liberdade que a ausência do pai – o que mais a aproximou do conceito de amor – trará em sua vida: múltiplas oportunidades futuras.

* Originalmente publicada no site do Diário Catarinense.


10 de janeiro de 2014

Ajuste de Contas

Grudge Match, EUA, 2013. Direção: Peter Segal. Roteiro: Tim Kelleher e Rodney Rothman. Elenco: Sylvester Stallone, Robert De Niro, Kevin Hart, Alan Arkin, Kim Basinger, Jon Bernthal. Duração: 113 min.

Para quem viveu no final da década de 70 o auge do boxe cinematográfico, quando o mundo conheceu Rocky e Jake La Motta, um confronto entre Robert De Niro e Sylvester Stallone – igualmente, no ápice de suas carreiras – seria visto com as melhores expectativas. No entanto, mais de 30 anos depois, quando ambos enfrentam um grande declínio, Ajuste de Contas mais se mostra uma tentativa fracassada de ressuscitar duas lendas – claro, a seu devido modo. E é curioso que não apenas o filme aponte esse deslocamento de época, como também aproveite essa deixa para criar gags e piadas que indicam essa realidade: Stallone, por exemplo, aproveita uma passada num frigorífico para treinar; o personagem de De Niro continua vivendo por um prestígio adquirido há muito tempo; e assim por diante. O diretor Peter Segal, famoso por suas comédias melodramáticas, não evita que essa ótica fora de época contamine a sua narrativa, o que não seria um grande problema, se soubesse a usar em seu favor. Assim, é uma pena que o roteiro explore como alívio cômico piadas insistentemente infames ao falar sobre tamanho, peso e idade, além de uma loud comedy (expressão que designo para comédia gritada) insuportável de Kevin Hart.

Além disso, a direção de Segal é tão evidente e complementadora com o roteiro infantil que chega a ser cômico o instante em que um personagem precisa falar duas vezes que outro é gordo, apenas para soar “engraçado”. Por outro lado, se De Niro está no controle automático, Stallone oferece algo de veracidade ao seu Razor. Deixando suas mãos sempre em movimento no primeiro ato e alongando a cervical constantemente, como se estivesse preparado para entrar no ringue, o ator só é sabotado quando Segal traz as atenções para ele novamente ao inserir uma estrutura sacrificável ao contexto e tornar tudo muito mais pretensioso do que precisava. O que nos traz a pergunta pertinente de Razor no primeiro ato: “o momento passou, por que agora? Não vale a pena!”. Uma pena que os produtores não pensaram da mesma maneira.


· Crítica originalmente publicada no Diário Catarinense

3 de janeiro de 2014

Os melhores momentos do cinema em 2013

Como ainda estamos recolhendo os fragmentos deixados por 2013, eu (com a ajuda do João Flores) decidi retomar uma lista que realizei pela primeira vez em 2011, onde apontei os meus momentos favoritos do cinema naquele ano. Num ano de grandes obras cinematográficas, eu não me restringi aos filmes do top dez divulgado no dia 31, mas sequências que tenham sido marcantes de alguma forma. Cheguei ao número considerável de 45 cenas, as quais listo a seguir:

  1. O interrogatório de Dodd à Freddie, em O Mestre;



  2. O passeio final entre pai e filho no sensível Questão de Tempo;



  3. O monólogo de Jep julgando uma socialite que pensa ter sofrido muito, em A Grande Beleza;




  4. Em Invocação do Mal, uma brincadeira de esconder termina de uma maneira assustadora no porão;

          
  5. Num perfeito exemplo de amor à primeira vista, a canção Esse Cara entoada por Irandhir Santos nos denuncia o primeiro momento em que Fininha fica encantado pelo artista, em Tatuagem;

  6. A sequência inicial de A Viagem ao som da sinfonia que dá título ao filme;

            
  7. A reunião de condomínio presente em O Som ao Redor;

  8. A impressionante performance de Anne Hathaway em Os Miseráveis;

        
  9. No longa-metragem Amor, Georges é sufocado por uma mão direita, o mesmo lado paralisado de Anne, em seus sonhos;


      


  10. A empolgação de Jessica com um informante evolui para uma cena extremamente angustiante no filme A Hora Mais Escura;





  11. Em Além das Montanhas, as freiras da paróquia começam a ficar assustadas com o temperamento de uma convidada – “ela estava falando com outra voz!”.

  12. O terceiro ato de O Segredo da Cabana;

          
  13. No brilhante Killer Joe, após um jantar que foge do controle, a única pessoa ingênua de uma caótica sociedade também se rende a depravação violenta de quem a cerca;

  14. O debate sobre relacionamentos em Antes da Meia-Noite;

  15. Evocando a distância entre Alejandra e o resto da turma, em Depois de Lúcia, Franco salienta a reação aterrorizante da menina ao saber de um passeio escolar;

  16. Hannah Arendt dá o seu discurso final sobre o julgamento social;

              
  17. O primeiro plano-sequência de Gravidade;

  18. O grito desesperado de negação do Capitão Phillips ao perceber que está vivo;

  19. Adèle e Emma se reencontram em um café;

  20. Na continuação de Sobrenatural, James Wan nos guia por uma grande porta vermelha e nos aproximamos aos poucos de um interrogatório;

  21. Mud e Ellis conversam sobre relacionamentos ao redor de uma fogueira;

  22. Charles canta uma canção no piano para Ivy, em Álbum de Família;

  23. Waltz não consegue resistir em se livrar de um importante personagem, em Django;

  24. Rodriguez se apresenta pela primeira vez na Africa do Sul, em Procurando por Sugar Man;


  25. As garotas mudam o papel de dominador e dominante em Spring Breakers;

  26. A dança entre Vronsky e Anna Karenina;


  27. Na sua homenagem ao gore em A Morte do Demônio, afora a chuva de sangue, Alvarez mostra sem ataduras um personagem tendo que tirar uma agulha do olho e outro precisando cortar o braço para parar o vírus.

  28. Em Muito Barulho por Nada, Benedito confessa o seu amor por Beatrice para uma plateia fictícia;

  29. Os monólogos solitários de Blanchett em Blue Jasmine;

  30. Em A Caça, Lucas perde o controle em uma igreja;

  31. A conversa de Khan e Kirk na Enterprise, em Além da Escuridão;

  32. Em Faroeste Caboclo, João volta a segurar uma arma e lembra-se de seu pai;

  33. Depois de Maio: De vários amigos que participavam da construção de jornal e panfletos, e o mimeógrafo à manivela, Gilles vira uma figura solitária olhando a máquina girar – como se seus sonhos tivessem ido embora;

  34. O cinema como ponto-chave da vida de Pilar, em Tabu;

  35. A conversa metalinguística em Segredos de Sangue;

  36. No thriller Os Suspeitos, a tortura feita numa banheira;

  37. A forma exitante com que Douglas tenta se relacionar com Damon, em Behind the Candelabra;

  38. A conversa dúbia entre Hoffman e Lawrence no primeiro ato de Jogos Vorazes: Em Chamas;

  39. Cameron Diaz transa com um carro no filme Conselheiro do Crime;

  40. No filme O Homem de Aço, Jonathan diz para Clark que ele é seu filho;

  41. A reação oposta de Hunt e Lauda acerca da morte de um piloto, em Rush;

  42. A participação de Michael Cera em É o Fim;

  43. A sequência com os barris em O Hobbit: A Desolação de Smaug;

  44. A perseguição dos ratos em Um Time Show de Bola;

  45. Em Dossiê Jango, o general Guedes sentencia que se não amarmos a deus, precisamos temê-lo.



                        Um bom 2014 cinematográfico!