2 de março de 2014

RoboCop

Idem, EUA, 2014. Direção: José Padilha. Roteiro: Joshua Zetumer, baseado no roteiro de 1987 escrito por Edward Neumeier e Michael Miner. Elenco: Joel Kinnaman, Gary Oldman, Michael Keaton, Abbie Cornish, Jackie Earle Haley, Michael K. Williams, Jennifer Ehle, Jay Baruchel, Zach Grenier, Samuel L. Jackson. Duração: 117 min.

Ainda que não seja um filme cínico ou de difícil entendimento, os dois Tropas de Elite foram inúmeras vezes tratados de forma errônea: como se fossem exaltações da violência policial ocorrida diariamente no país. Exatamente o efeito contrário do que propõe a obra inteligentíssima de Padilha, que trata a violência policial com uma realidade absurda e resume o pensamento reacionário de uma sociedade que clama por justiça pelas próprias mãos. Não à toa, o “herói nacional” que virou o Capitão Nascimento depois do primeiro filme gerou tanta preocupação, que um segundo longa foi necessário para deixar mais ou menos claro que aquele personagem não possuía nada de heroico. Muito menos a polícia militar. Da mesma forma, os direitos humanos e o poder midiático tendencioso, decisivo e influente de alguns veículos também davam às caras para mostrar todo o conjunto que cercava um sistema extremamente impiedoso socialmente e precário, muito precário.

RoboCop segue a mesma lógica que os dois Tropas de Elite e assume, além disso, o teor político-social do maravilhoso documentário Ônibus 174. Há a mídia tendenciosa de Pat Novak, que faz o mesmo papel que já foi de André Mattos no segundo Tropa, a sociedade caótica e criminalizada que poderia ser qualquer cidade do mundo, além da ânsia popular pelo uso das forças policiais, que sempre surge assustador e perigoso. O diretor evoca esse ar político desde o princípio, discorrendo sobre desarmamento, o uso do poder militar americano nos países muçulmanos – numa sequência brilhante, em que os homens-bombas adquirem uma nova filosofia e mudam sua mensagem: o suicídio passa a ser uma autodefesa –, além de colocar em xeque o uso dos drones e a própria “recém-descoberta” espionagem utilizada pelo governo dos EUA. E sempre de forma sutil: muitas vezes em diálogos ou, na maioria delas, em imagens – a cena em que RoboCop persegue um dos mandantes de sua morte e começa a acessar dados da Justiça americana, procurando, inclusive, por celulares, e-mails, câmeras e rastreadores é um belíssimo exemplo.

Numa época intensa como a que vivemos, além do mais, Padilha escancara o uso dos instrumentos midiáticos e publicitários para a legalização da violência – sempre muitíssimo bem executadas nos programas de Pat Novak (Samuel L. Jackson, ótimo!), que não foge muito de figuras da nossa própria televisão, como Sheherazade, Wagner Montes, Datena, entre outros, e na influência popular perante o congresso. Como não perceber, portanto, o apelo que robôs “incorruptíveis” e sem sentimentos poderiam possuir numa sociedade como a nossa?! E compreender o quão isso, igualmente, pode ser problemático. A figura de uma criança portando uma faca e sendo metralhada por um desses “avanços tecnológicos” num noticiário é o indicativo mais assustador. O que ganha ainda mais peso dramático quando o governo pede para as imagens serem tiradas imediatamente do ar. O famoso controle de danos.


Existem inúmeras diferenças entre o original e remake. Não há como utilizar a sanguinolência desenfreada do primeiro, muito menos a natureza de Murphy, assim sendo, Padilha cursa um caminho alternativo. O personagem de Keaton, nesta perspectiva, é eficientemente megalomaníaco, cínico, caprichoso e autodestrutivo, como os empresários – na visão do diretor; muito diferente do ingênuo e promissor rapaz que não sabe onde está se metendo no original. Sob a mesma ótica, a morte de Murphy não pode ser igual. A corrupção policial conduz o personagem para outra abordagem – além disso, a troca de figurino cabe na trama e ocasiona uma mudança interessantíssima para o clímax final: a personalidade final de Murphy.

Entretanto, o filme não é só uma façanha em seu roteiro, mas na direção precisa de Padilha, que dá razão para a existência daquele mundo. Não só na forma como aproxima a câmera durante os monólogos, nunca a deixando parada, como também nos pontuais planos plongées: usados, principalmente, para diagnosticar alguma ação final envolvendo um personagem – analise o segundo em que o diretor se afasta lentamente do parceiro de Murphy, o qual está perto da morte, como se a alma daquele estivesse deixando o corpo. Da mesma forma, ele é certeiro na forma como nos aponta uma intimidade com o protagonista: basta notar quando, para nos dar essa sensação de proximidade, Padilha nos aproxima do local em que ele dorme apenas na segunda vez que o vemos, após sabermos que ele está de volta e pronto para vingar sua morte. Como se não fosse o bastante, o brasileiro é dono de uma sequência fantástica, ao utilizar um travelling circular para fragmentar sonhos e realidades no despertar de RoboCop – um trabalho tão emocional e belíssimo que seria injusto não figurar nas listas de melhores momentos do cinema de 2014.

Dúbio como o personagem de Oldman, que está numa atuação envolvente e excepcional, Padilha faz um dos melhores sci-fis dos últimos anos, que só não irá adquirir essa alcunha por boa parte da crítica cinematográfica por questões de preferência e por não possuir o charme de “filme original”. Embora demasiadamente falho nas sequências de ação (já que o costumaz corte rápido é trocado por algo tão torturante quanto, a instável câmera na mão) e no convencional terceiro ato, o cineasta convence pela mensagem e por trazer um RoboCop que, ainda que esteja num retorno limitado, empolga. 


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