7 de abril de 2014

Noé

Noah, EUA, 2014. Direção: Darren Aronofsky. Roteiro: Darren Aronofsky e Ari Handel. Elenco: Russell Crowe, Jennifer Connelly, Ray Winstone, Anthony Hopkins, Emma Watson, Logan Lerman, Douglas Booth. Duração: 138 min.

“Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu e deu à luz Caim, e disse: ‘Possuí um homem com a ajuda do Senhor’. E deu em seguida à luz Abel, irmão de Caim. Abel tornou-se pastor e Caim lavrador. Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. Abel, de seu lado, ofereceu dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras dele; e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido”.
[Genesis, capítulo 4, versículos 1, 2, 3, 4 e 5]

À primeira vista, Noé não é um filme comum de Darren Aronofsky. Querendo aproximar-se de cineastas como Mel Gibson, William Wyler, Cecil B. DeMille e até mesmo Kubrick e Scorsese, o americano aparenta ter dirigido um protótipo de épico feito para estúdio, a fim de conquistar o público católico. Por outro lado, dono de uma carreira que, apesar de parecer divergente, complementa-se, Noé nasce como um projeto muito mais ambicioso do que poderia ser esperado, culminando numa resposta ferrenha à adulação cristã, além de servir como gancho para explorar diferentes camadas: familiar, social e pessoal.

Afinal, partindo do ponto de que Noé é um personagem que se vê entre sua fé e sua devoção pela família e a natureza, o personagem-título reside na linha tênue entre a loucura e o seu sacrifício extremo – assim, não se distanciando de obras como O Lutador ou Cisne Negro, ambas do diretor. Claro que, a princípio, a lógica é criar um paralelo com A Fonte da Vida, o que até mesmo a trilha sonora do soberbo Clint Mansell não se reprime em fazer: construindo acordes semelhantes aos de sua composição Death Is The Road to Awe.

Todavia, a obra de Aronofsky se estende a muito mais que o âmbito do relacionamento familiar, ainda que esteja intrínseco ao que estamos assistindo. A jornada de Noé é sempre obscurecida pela questão milenar regida por nossa natureza: sou bom ou sou mau? Sou igual àqueles que combato? E o personagem, diferente do que se espera, não trilha o caminho da arrogância ou da autossuficiência; muito pelo contrário, querendo provar para seu “mestre” que possui as qualidades necessárias para cumprir a tarefa, sacrifica sua própria essência ao livrar-se de outros seres humanos sem piedade. Como o ambientalista que é, Noé acredita que a natureza é a única e possível evolução. Não haveria espaço para homens na nova sociedade. Não à toa, refugia-se no único lugar que sabe não ter sofrido a ação dos homens: as florestas, o verde. O próprio diálogo de Noé com seus filhos aponta para outro simbolismo pessoal e pertinente na obra: “o vento leva sementes, outras brotam. Elas têm um propósito”.

Aqui, aliás, precisa-se começar a evidenciar o contraponto brilhante que Aronofsky cria ao retratar Noé como o “favorito” do “Criador”. Deixando claro que a metáfora de Caim e Abel serviria para o decorrer do longa-metragem como a principal meta, o diretor imprime com facilidade os lados dos dois irmãos. Se a luta entre Caim e Abel, por exemplo, representa o primeiro homicídio da humanidade, o princípio da tentação e da ganância, o americano inicia da mesma forma a sua obra: ao provocar o espectador com Tubal-cain assassinando o pai de Noé e estabelecendo a lógica.

Continuando o seu caminho pelo antigo testamento, o diretor também não só brinca ao trazer pelugens diferentes para um animal ferido que é encontrado pela família de Noé (Cisne Negro), mas também com o fato do sacrifício do espécime aos céus (capítulo 4, versículo 4: Abel oferece o primogênito de seu rebanho).

Não dá para deixar de destacar, nesta perspectiva, o apreço que Abel, digo, Noé, possui por Sem, o primogênito. Da mesma forma, para deixar a luta final entre Tubal-cain e o protagonista ainda mais clara, como uma demonstração de uma segunda chance, um recomeço, os opostos vividos pelos dois, apesar da mesma espécie (outro símbolo), são sublinhados durante todo o percurso. Note, sob esta ótica, o enquadramento de Aronofsky que confere o primeiro encontro entre os dois – de um lado as árvores e frutas silvestres (Caim, ou melhor, Tubal-cain), doutro o rebanho e a arca (Abel, ou melhor, Noé). A própria cena na barraca, quando o personagem de Winstone cobra a adoração de Deus pelo outro, reflete este espírito.

Como se não fosse o bastante, o americano ainda é mais claro na forma como o atentado a Noé é orquestrado, com este seguindo seu próprio parente para ser morto. Neste caso, ao mesmo tempo, importantíssimo salientar a tragédia familiar em que os personagens estão envolvidos: basta avaliar que a parte em que Tubal-cain entra na arca é a que Cam cuidava, a mais frágil. Como se a arca fosse exatamente um símbolo para aquele ambiente, que estava corrompido. Também vale indicar que o “antagonista” apoia-se no machado de Cam para se levantar durante uma discussão com Noé e usa exatamente aquele para entrar na arca (sem esquecer que, olha só, a combinação dos dois nomes formam exatamente o nome de Caim). Cam, além do mais, é um dos personagens mais interessantes do roteiro e sua busca pela aprovação do pai, já que se sente reprimido desde pequeno, é exatamente a válvula que dá origem à tragédia: observe que, mesmo que inconsciente, o personagem só vai para as florestas quando ouve do pai: “estou pedindo para você ser homem” – algo que é semioticamente belo.

Do mesmo modo, Noé possui uma invejável profundidade para debater a sua própria natureza e a compaixão e ódio intrínsecos à humanidade. Seu próprio duelo intimista é denunciado em sua natureza ambientalista versus o rebanho para o sacrifício. Algo que é diagnosticado em uma magnífica sequência envolvendo uma decisão que precisa ser feita relacionando homens e animais: analise, neste ponto, que os absurdos sacrifícios humanos vistos nas comunidades projetavam uma troca de duas meninas por um animal, algo que o próprio Noé estaria disposto a fazer, mas lutou contra o que pensava ser sua missão. Assim sendo, é louvável que Aronofsky exponha o cruel deus do antigo testamento, ao retratar a mulher como moeda de troca insignificante e onde o genocídio e o assassinato eram práticas vistas como indispensáveis.

E é claro que isso só seria possível com um diretor que soubesse o que estava fazendo, como é o caso. Cínico na forma como encara a adoração ou dons premonitórios (os alucinógenos são impagáveis), Aronofsky é genial ao propor o conflito atemporal entre a essência da vida: de tal modo, proporcionando a sequência do ano ao retratar a história do criacionismo com as imagens da filosofia do Cosmos – a evolução do macaco para Adão e Eva é indescritível. Além disso, prova sua excelência em inúmeras cenas, destacando-se a corrida com a câmera subjetiva para o território dos guardiões, o brilhante travelling circular que inicia nas florestas, faz a volta em 360º quando notamos a arca pela primeira vez e termina no novo mundo, além da sequência do voo das pombas. Igualmente, o perfil de Noé é sempre bem enquadrado no andar imponente dentro da arca, apenas um homem fora dela. Não se esquecendo de duas cenas intensas: uma delas, o monólogo desesperado de Crowe, após um plano-sequência; outra, a aproximação da primeira gota de chuva de cima para baixo, que vira uma lágrima, enquanto os homens visualizam a chuva de baixo para cima.

Nunca deixando de lado seus simbolismos, Aronofsky ainda experimenta passear pelas metáforas bíblicas: desde o batismo plagiando palavras do velho testamento, o toque celestial que a Capela Sistina retrata, o ouro puro visualizado nos arredores, a luz que faz com que não percebamos a nudez no paraíso, as vestes de pele, os gigantes que viviam na terra até a pomba que finalmente retorna trazendo uma folha verde de oliveira. O próprio “teste” do personagem-título se assemelha ao de Abraão, que curiosamente é da linhagem de Sem, e a imagem de Matusalém morto nos sonhos de Noé já ressaltava a morte do homem mais velho – já que o período era de renascimento.

Além de contrastar, durante os dias, as etapas vividas: o nascer do sol é onde sabemos que a arca será construída; o amanhecer é durante a parceria entre Noé e os guardiões; a arca é visualizada pela primeira vez quando o sol está mais intenso, provavelmente 12h; o entardecer surge durante os preparativos finais; e, finalmente, o pôr do sol é o período em que as decisões finais são tomadas e a chuva começa a cair.

Por fim, enquanto Connelly está pouco à vontade, Watson se limita a expressões chorosas e Lerman mostra suas limitações, Russell Crowe é o fio condutor da história: desde seus olhares de aprovação, passando pelo martírio e solidão enquanto ouve as vozes gritando por clemência no lado de fora da arca, até sua maneira irredutível de agir a partir do segundo ato, o ator é expressivo o suficiente para mostrar toda a dor de um ser que abandonou seu caráter para conseguir cumprir seus objetivos – nesta perspectiva, a passagem em que ele se encontra sozinho do lado de fora da arca, segurando-se apenas a uma corda, como se fosse a sua fé, é belíssima.  Também, o olhar que esboça durante o canto de Watson para os filhos recém-nascidos é comovente e singular, retratando a sua perdição.

Deixando claro que este era um de seus maiores pontos desde o começo, aliás, Aronofsky focaliza madeiras que se intercedem formando um x na hora da conversa de Crowe e Watson – como se fosse exatamente o x da questão (com o perdão do trocadilho). O tema é, mais uma vez, o fim e o início. “Eu estava errado,” assume pela primeira vez o personagem-título, continuando: “Você foi uma dádiva!”. Ainda assim, o americano não parece acreditar nessa mensagem. Se Hopkins procura frutas silvestres para sentir o sabor pela última vez, como se fossem o próprio fim, a última tentação, Winstone sobrevive em suas últimas palavras antes de sair do que viria a ser o campo de batalha daqueles homens: “voltarei com legiões”, declara. Assinalando a ganância do homem moderno. Noé realmente não é um filme comum de Aronofsky. É um filme incomum de um cineasta incomum.


Um comentário:

Gustavo Leso disse...

Não esperava note menor vindo de ti... Tu sabe que tu pode as vezes não gostar de um filme dele certo? hehehehe
Falando sério, não gostei muito. Achei por vezes o filme tedioso e mal amarrado, embora não possamos ver o vilão, ele está sempre presente. Achei as atuações em geral fracas, Crowe parece as vezes ter dor de barriga e embora o rei vivido por Winstone seja um rei sem escrúpulos, os questionamentos sobre a moralidade de Noé são sempre rasos nunca se aprofundando. E eu falo isso com relação a maioria dos diálogos, esses deixando sempre a moralidade dos "bonzinhos" intacta ao invés de tentar se aprofundar nos questionamentos das razões ou dos porquês.
Achei interessante o contraponto entre o evolucionismo e o criacionismo, mas achei meio covarde ele cortar a transformação do macaco para o homem, suplantando apenas a imagem de dois seres iluminados.
Se foi intencional que Aronofsky mostrou como a mulher foi sempre posta como culpada por todas as mas decisões da terra, parabéns ele consegui ser extremamente sutil em passar essa mensagem. Se não, ele tem algumas limitações psicológicas.
Em resumo dentre todas as obras desse fantástico diretor, esse eu considero um filme menor dele. Numa nota de 0 a 5, acho que 3 está de bom tamanho. Dou 5 para a sequencia, Criacionismo, Evolucionismo, Pecado Original e O Fim de Tudo.
Forte abraço.