8 de outubro de 2014

Garota Exemplar, A

Gone Girl, EUA, 2014. Direção: David Fincher. Roteiro: Gillian Flynn, baseado no livro escrito por ela. Elenco: Ben Affleck, Rosamund Pike, Tyler Perry, Neil Patrick Harris, Carrie Coon, Kim Dickens. Duração: 149 min.

No mês passado, o apresentador Jon Stewart expôs no seu Daily Show um panorama interessantíssimo sobre a análise imediatista da mídia e suas múltiplas camadas: segmento que chamou de A Magnificent, Wonderful Story, a qual contava a reação americana à volta de um soldado sequestrado. Na perspectiva do jornalista, a ótica de "inocente até que se prove o contrário" não era algo buscado pelas principais redes televisivas do país - caminhavam para onde o apelo popular estava, conforme as ambições de cada canal/âncora. A parcialidade pode envolver as nossas expectativas para onde ela apontar. Um filme que estabeleça uma associação lógica com a vítima somente para usar contra o nosso verdadeiro protagonista, portanto, é uma jogada brilhante de David Fincher, em seu A Garota Exemplar. Afinal, como fazer, quando nos inserimos numa dupla interpretação de um cenário de crime?

Não que personagens influenciando ou ditando a nossa percepção das regras narrativas do longa seja algo novo na filmografia do americano, mas nunca esteve tão clara. Em Seven, por exemplo, partíamos da influência das ações e consequências de uma única pessoa: o personagem de Kevin Spacey; em Clube da Luta, a mente de Durden era a nossa protagonista e os elementos cênicos giravam em torno dela; já Zodíaco, a sombra do assassino era crucial - envolvia não só os personagens, mas o olhar do espectador. E não à toa que o primeiro contato com A Garota Exemplar, o nosso centro das atenções, é a cabeça de Amy Dunne no centro do plano. A plasticidade da cena expõe muito mais que os pensamentos e preocupações de Nick: é a natureza racional da narrativa, com a emoção aflitiva apenas manifestada como pano de fundo. Da mesma forma, este indício não é deslocado - a semântica desse duelo é vista freqüentemente: a passagem por uma biblioteca enquanto os dois transam, a aliança num bloco de anotações, entre outros.

A direção de Fincher se encarrega de advertir sobre duas questões, basicamente: a primeira, a lógica dissimulada por cada envolvido; a segunda, o relacionamento malicioso e manipulador entre duas pessoas. Além da implicação midiática que tudo isso ocasiona, claro. Obedece a coerência de uma investigação policial: compreendemos as pistas, a direção que aponta, mas não podemos afirmar com certeza, em primeira instância, quem está falando a verdade ou não.  É, deste modo, confortável imaginarmos a culpa do personagem de Affleck através das lembranças explanadas por um diário da vítima, que automaticamente criamos empatia. Como não suspeitar de alguém que não corresponde aos sentimentos esperados, continha tudo no nome da esposa, havia feito dividas em seu nome e estava sem emprego? Nesta lógica, o cineasta brinca com nossa captação, apresentando diversos argumentos para não contornarmos qualquer dúvida de que aquele homem é culpado dos crimes: o sorriso na coletiva, as pistas, a maneira como se esquiva de algumas perguntas, o xingamento no carro, o suposto descontrole registrado por Amy, assim por diante.

Administrando coesamente esse tom, Fincher chega a sugerir uma possível misoginia de Nick, o que colabora ainda mais ao afastamento de sua figura ("Sempre sou ferrado por mulheres!"). Partimos, assim, de uma dupla interpretação do cenário de um crime. Um cenário de falsas aparências. E é aí que o talento do diretor para gerar dubiedades entra na história: jogando com as pistas deixadas por Amy, resgatando o clima investigativo de Millennium, Fincher aponta para o afastamento social, particular e familiar dos personagens. Desta forma, os primeiros establishing shots evidenciam o abandono, o tempo parado, a solidão e a cidade pequena em que vamos estar inseridos, onde um caso "simples" de sequestro desestabilizará a cidade inteira. O primeiro momento em que teremos um zoom de aproximação dos personagens é justamente no relacionamento entre irmão e irmã, no bar, que representa a intimidade dos dois e a cumplicidade em toda a trama - caso que a mídia trata de apontar, idem. A manipulação acaba sendo fruto do desenvolvimento da própria história, o controle da trama: quase uma disputa de protagonista. 

E se a montagem de Kirk Baxter, colaborador habitual, imprime eficientemente as lembranças como contraste da realidade, a fotografia de Jeff Cronenweth também se preocupa em evidenciar as diferenças entre uma e outra: enquanto o passado surge em tons mais amarelados, o branco cinzento, sem vida, é predominante na vida de Nick. Ao mesmo tempo, a trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross chega ao ápice da tensão quando decide utilizar a percussão como se batidas de coração estivessem sendo intensificadas, o que alimenta o tom. Este medo contínuo, aliás, é invariável, apenas muda de lado. Se no começo, o personagem de Affleck parece esconder algo e as suas preocupações são evidenciadas pela câmera de Fincher (a cena em que ele se esconde no aeroporto, tapando a face com um boné, e um grande cartaz publicitário da jornalista Sharon aparece atrás dele, como se o julgasse, é excelente); a personagem de Rosamund Pike, do mesmo modo, sente-se perseguida a medida que o caso se desenrola.

Sugiro não ler este parágrafo antes de ver o filme. E é interessante como algumas constatações ocorrem logo depois que vemos que elas não passavam de uma dissimulação. Analise que o empurrão dado por Nick, que passa a se tornar cada vez mais ameaçador para a esposa, só acontece quando ela volta para a casa e havíamos visto que ele não era o troglodita que pensávamos. Podemos citar, ainda, a música que toca no carro em que Nick leva seu pai ao médico (cuja razão é apenas salientar pouco tempo depois uma notícia sobre a despreocupação de um com o outro), Don't Fear the Reaper: cujos versos trazem uma possível comparação com o próprio relacionamento entre Amy e Nick - "não tema o ceifador, pegue a minha mão", algo ocorrido no clímax.

Concentrando esforços em estabelecer que atualmente a verdade pode ser particularizada,  Fincher é convincente em sugerir que as preocupações/dúvidas que temos, no começo e no fim, acabarão sendo as mesmas. Numa trama em que o controle é algo intrínseco ao desenvolvimento, o cineasta compartilha as frustrações de um dos seus protagonistas ao ditar que a racionalidade pode ser perigosa.

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