22 de dezembro de 2015

Pequena Morte, A

The Little Death, Austrália, 2014. Direção: Josh Lawson. Roteiro: Josh Lawson. Elenco: Bojana Novakovic, Josh Lawson, Damon Herriman, Ben Lawson, Patrick Brammall, Lisa McCune, Lachy Hulme, T.J. Power, Stephanie May, Kate Mulvany, Tasneem Roc, Kate Box, Darren Gallagher, Erin James. Duração: 96 minutos.

Extraindo sensibilidade de sua loucura verossímil, A Pequena Morte é uma comédia pessimista sobre os pequenos prazeres da vida. Não apenas as discussões hilárias dos casais acerca de seus fetiches ou vontades contam com um timing brilhante (“Nossa, mas eu sempre chego em má hora”), como também, apresentando todos os personagens como pessoas genuínas e palpáveis, o filme investe na comovente fragilidade do lar – além de levantar inúmeras reflexões impressionantes para um filme tão leve.

Dividido em quatro casos conjugais que se cruzam ao decorrer da narrativa, o longa-metragem dirigido pelo estreante Josh Lawson é certeiro na leveza com que explora seus temas, assim, rendendo cenas impagáveis, como a reação de Paul ao saber que a fantasia de Maeve é ser estuprada por alguém – e há de se aplaudir que o tom de cinismo nunca seja retraído, ficando fácil rir de algo tão complicado como o tema proposto. 

Os diálogos em que Paul reflete que não sabe se seria um bom estuprador e o amigo fala que isso é uma coisa boa são surpreendentes, aliás. Da mesma forma, o caso de tesão por lágrimas que cerca a vida de Dan e Evie é excelente: perceba que o que mais é tocante é a forma como que Evie tenta fugir de sua fantasia por se achar doente, não a graça em tudo aquilo; bem como a revelação de que não goza desde o dia do casamento é algo incrivelmente honesto.

Lawson desenvolve parábolas sobre o cotidiano, a rotina do sexo e uma forma de lidar com nossos maiores fetishes. Mesmo quando embarca em caminhos perigosos, como o uso da esposa ao dormir, a obra não perde seu fio condutor em nenhum momento: o seu absurdo. As músicas, do mesmo modo, corroboram com o tom proposto e satirizam as situações. A cena da tentativa fabricada de um estupro na garagem e a reação do marido ao acordar no hospital, apenas querendo saber se atendeu aos pedidos da futura esposa é assustadoramente comovente. Como não notar o amor de ambos, ainda que seja tão estranho? O mesmo para a relação do homem que deseja se tornar ator e usa cenários na cama para suprir suas carências.

Mas, talvez, o mais interessante de todos eles seja o relacionamento entre Monica e Sam, que gira através da imagem e dos sinais. Num cenário em que apenas a imagem pode tornar a vida aceitável para um surdo-mudo, a forma como o diretor lida com o disque-sexo e o primeiro momento em que os dois se apaixonam é inesquecível. E mesmo que o momento seja para provocar o riso, note que até a vida da atendente do tele-sexo surge para nos comprovar como, na realidade, os problemas estão em todo o lugar.

A Pequena Morte não é um filme esperançoso, afinal; é pessimista. As mentiras começam a se adaptar, na sequência. E o único momento em que as nossas vidas poderão se cruzar é numa tragédia.

18 de dezembro de 2015

Spotlight - Segredos Revelados

Spotlight, EUA, 2015. Direção: Tom McCarthy Roteiro: Josh Singer e Tom McCarthy. Elenco: Michael Keaton, Mark Ruffalo, Rachel McAdams, Liev Schreiber, John Slattery, Brian d'Arcy James, Stanley Tucci, Jamey Sheridan. Duração: 128 minutos.

Um dos grandes jornalistas do século XX, Gay Talese, tem uma frase sobre Nova York que poderíamos usar para qualquer região ou, em específico, a cidade de Boston, Massachusetts, onde o jornal The Boston Globe está sediado. "É uma cidade de coisas que passam despercebidas". Você tem as pequenas curiosidades, os eternos conhecidos, amigos de infância, os alcoólatras que perambulam pelas calçadas até achar o caminho de casa, onde suas esposas o esperam com a janta fria. Mas há segredos que não se discutem. Conhecidos ou não. Nunca discutidos. Não só na narrativa de Tom McCarthy, mas na essência da pauta jornalística americana, é o fator externo que influencia no interno.

Assim, já iniciamos a história do grupo Spotlight, coordenado pelo jornalista Walter V. Robinson, com o espectro do futuro imprevisível das reportagens impressas: tanto na demissão de um dos repórteres mais velhos e prestigiados do Boston Globe e na chegada do "forasteiro" Marty Baron, que passa a investir em pautas intocáveis, quanto um outdoor da AOL na frente do jornal. Afinal, é hora de encarar o futuro.

Com isso, o desenvolvimento da pauta jornalística proporcionado pelas elipses de Tom McArdle é certeira ao conferir o apego pelos detalhes dos repórteres, algo que é correspondido pelo uso das anotação ao invés do gravador. Tal como Todos os Homens do Presidente, o processo investigativo dos repórteres é compreendido e a convicção por trás do texto, do produto entregue aos leitores, evidenciada. Portanto, McCarthy torna a discussão sobre o jornalismo mundial, não apenas local, compreendendo a oportunidade que tem em mãos.

Constrói, igualmente, a vida pessoal daquelas pessoas com uma sintonia invejável com a realidade: naquela equipe de repórteres, não há espaço para romances. Os companheiros dos personagens são coadjuvantes, o trabalho é o protagonista. Assim, não só o detalhe da aliança no dedo de Robby é recorrente, mas também: o relacionamento superficial de Sacha, que só compartilha refeições; Matt, que o máximo que consegue é deixar recados/avisos para seus filhos na geladeira; e, claro, a sugestiva separação de Mike, ao observamos seu pequeno quarto recém decorado com pilhas de documentos.

Quando McCarthy escolhe abraçar o macrocenário da situação que os jornalistas se envolvem, o envolvimento passa a ser outro. Criando opostos para cada conjuntura - as figuras que possuem controle sobre as instituições em condados americanos contra jornalistas que cada vez mais perdem a influência que atingiram noutra época -, o próprio papel do cardeal nesta estrutura aponta para a abordagem pastoral: com a fragilidade de pequenas regiões, onde a simplicidade das pessoas acaba sendo corrompida por uma pessoa pública.


Como lutar contra uma força invisível, a fé? Com fatos. Desta forma, as mãos trêmulas de Ruffalo na leitura da carta ou o choque da porcentagem de padres que abusavam de crianças e o papel da igreja em abafar os crimes são sequências inesquecíveis. O mesmo que gera as discussões sobre o que é publicável e o que não é. Porque é ali que McCarthy se torna uma voz respeitável acerca de uma discussão sobre jornalismo e coloca seu nome entre outras obras seminais sobre o papel da mídia.

8 de dezembro de 2015

Garota Dinamarquesa, A

The Danish Girl, Inglaterra, 2015. Direção: Tom Hooper. Roteiro: Lucinda Coxon, baseado na novela de David Ebershoff. Elenco: Alicia Vikander, Eddie Redmayne, Amber Heard, Ben Whishaw, Pip Torrens, Matthias Schoenaerts. Duração: 120 minutos.

De certa forma, é difícil condenar o cinema de Tom Hooper ou chamá-lo de picareta. Porque, ao mesmo tempo em que seus filmes carecem de inteligência na execução dos planos, a direção de atores e a condução dramática de sua história são sempre fascinantes. Em A Garota Dinamarquesa, ancorando-se na franqueza de personagens soberbamente interpretados por Alicia Vikander e Eddie Redmayne, o inglês consegue novamente nos transportar com sensibilidade para uma obra sobre a peculiaridade dos desejos, identidade e a delicadeza do toque.

Sob esta ótica, só a naturalidade com que aborda a descoberta da identidade de gênero de Lili merece aplausos, por não tratá-la como um estereótipo ou num equivocado pré-conceito, já que a transexualidade não quer dizer homossexualidade. Pelo contrário, Einar ama sua mulher e evidencia esse amor sem nunca abandoná-la. Para ele, Lili é outra pessoa. Não à toa, a “prima” é citada em terceira pessoa sempre que possível pelo casal, como se, naqueles momentos, ela realmente não estivesse presente.

Com isto, Gerda Wegener se torna o equilíbrio do casal e a personagem de maior força da narrativa. Se a sua paixão e afeição pelo marido são demonstradas num semblante mais sexual, físico, num primeiro instante; em segundo plano, ela acha apenas divertido que ambos compactuem um segredo tão diferente, não notando o que aquilo tudo poderia significar. É comovente, portanto, a maneira com que sua mudança sucede, já que, após observar um discreto beijo entre Lili e Henrik, a personagem compreende que seu Einar já não está mais ali. 

Vikander é genial ao transparecer cada uma dessas nuances: o amor e devoção pelo marido, o companheirismo que continua tendo com ele e, claro, a sua própria carência em segundo plano. É lindíssimo, desta forma, ela deixando o símbolo final, no clímax, voar. Como se Lili, finalmente, estivesse livre.

Eddie Redmayne, por sua vez, surge completamente diferente do seu personagem de A Teoria de Tudo, cujo também passava por uma transformação extrema. Se no filme de Hawkins, o ator evidenciava os tiques do cientista com as mãos constantemente agitadas e o corpo inclinado; aqui, Redmayne expõe a delicadeza do toque, como se aproveitasse o contato do tecido na pele, como se sentisse desejado, natural, numa intimidade recém-descoberta. Igualmente, o gestual avança conforme suas experimentações; além de sempre manter a cabeça reclinada – salientando sua timidez.


Ao contrário dos indícios prévios, A Garota Dinamarquesa não é um filme de aparências. É uma prosa sobre a descoberta de quem realmente somos.

3 de dezembro de 2015

99 Homes

Idem, EUA, 2014. Direção: Ramin Bahrani. Roteiro: Ramin Bahrani e Amir Naderi. Elenco: Andrew Garfield, Michael Shannon, Laura Dern, Clancy Brown, Tim Guinee, Noah Lomax. Duração: 112 minutos. 
 
No seu excelente Capitalismo – Uma História de Amor, Michael Moore indicava algumas das artimanhas que os grandes conglomerados bancários faziam para continuar inflacionando o lucro e especulando – inclusive se aproveitando da classe média, que assumiam novas hipotecas com a promessa de dinheiro fácil e rápido. A longo prazo, o resultado foi a luta das pessoas na justiça para ficar com seus imóveis, cujo os bancos passavam a reivindicar. 99 Homes, de Ramin Bahrani, estende a discussão da ganância levantada por filmes como Wall Street, usando a moralidade, a lei e a humanidade como ganchos para chegar até aonde quer chegar: a facilidade de se corromper, numa crise. 

Inserindo-nos na perspectiva do “easy money”, que passa a traçar a vida do personagem de Andrew Garfield, o diretor flerta com as sequelas familiares produzidas pela crise imobiliaria nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que evidencia a dificuldade em conseguir emprego, o que prepara o terreno para as facilidades oferecidas por Rick Carver. Até onde você iria pelo dinheiro? “Até a recuperação de sua casa”, Nash pensa. Mas essa nunca acaba sendo a realidade, algo refletido nos piores momentos de seu trabalho: o primeiro despejo de um casal e o despejo de um idoso.

Bahrani confia na instabilidade criada, e que gera solidez as camadas de seu roteiro. Se suas frases mostram o desprendimento no mundo dos negócios (“Você não confia em mim? Você me contratou, eu não tenho escolha” e “Fodam-se os sonhos. Por mais 100 casas!” são bons exemplos), o diretor concentra no personagem de um soberbo Michael Shannon o espectro do cortejo e da ambição. Ao mesmo tempo em que seu personagem aperta a mão de um morador, ele o apunhá-la com outra, reprimindo um desdém e vergonha insultantes.

Quase reprisando o papel de Michael Douglas, em Wall Street, o monólogo sobre escolhas, fugas, a falsa preocupação com a lei e de que a América não foi construída por perdedores (já que seria a “terra dos vencedores”, feita por eles e para eles), Shannon é a válvula de 99 Homes. “Eu sou apenas o representante”, diz ele, nem olhando nos olhos de quem está perdendo tudo, quando despeja famílias de suas casas.

Na luta entre a burocracia e a humanidade, resta para Andrew Garfield ser o rosto da empatia, após passear pelos dois mundos. É um pena, portanto, que a limitação de sua transformação seja tão imensa, fazendo com apenas o roteiro possa denunciar o passo a passo que o leva até o clímax final.

Porque, ainda que a alternância entre raiva, tristeza e semblante cosntantemente fechado não auxiliem o trabalho de Garfield, o trabalho de Bahrani é suficiente para ressaltar o quanto um imóvel pode ser gigante quando não há mais com quem dividi-lo.

28 de novembro de 2015

Sr. Holmes

Mr. Holmes, Inglaterra/EUA, 2015. Direção: Bill Condon. Roteiro: Jeffrey Hatcher, baseado no romance de Mitch Cullin e nos personagens de Arthur Conan Doyle. Elenco: Ian McKellen, Laura Linney, Milo Parker. Duração: 104 minutos.

Na plenitude de sua decadência, Sr. Holmes é um título ilustrativo para um homem que há muito deixou de ser chamado pelo primeiro nome. Sherlock é apenas o que aquele senhor já foi, uma sombra do passado, que aos poucos se esvai de uma debilitada mente. Na obra de Bill Condon, a senilidade versus a mocidade importa muito mais do que os plots mal realizados. 

Para familiarizar o espectador com a drástica mudança, Ian McKellen empresta suas nuances para se tornar memorável na pele de um vencido Sherlock Holmes. Com uma rabugice ainda mais acentuada que a do personagem de Conan Doyle, o britânico expõe a condição que se encontra com uma naturalidade ímpar, reforçando o sofrimento na obra – algo que o instável roteiro não faria sozinho. 

Desta forma, a própria maneira de tatear os lugares por onde passa e a constante análise de suas mangas demonstram que, ao mesmo tempo em que Sherlock tenta não perder a postura elegante que sempre esbanjou, ele está constantemente pronto para encontrar algo ou, melhor, apoiar-se em algo. Literal e figurativamente. Com inteligência, mantendo-se neste ponto, McKellen denuncia na própria forma como segura sua bengala: da imponência para a fragilidade. 

É com a debilidade de seu protagonista, que o efeito de uma frase tão simples (“não se pode resolver tudo”) ganha uma conotação tão triste. O mesmo com os presságios que a trama adiciona aqui e ali para dar um sabor mais doce para uma obra amarga. Se o relacionamento com Roger parece resgatar uma mocidade que havia sido perdida com Watson, ao encará-lo deitado picado por vespas, Holmes desaba junto a ele – no acúmulo das dores que não se atrevia a sentir. 

Fechando os olhos pontualmente, numa combinação perfeita de desdém e tristeza, por ninguém o entender, Ian McKellen confere uma dramaturgia fascinante a um homem que sempre foi descrito como tal. Provando que, ainda que seja um caso de vespas, o mistério, a solidão e a essência de Sherlock Holmes permanecem imutáveis. 



23 de novembro de 2015

A Verdade sobre Marlon Brando

  “Quando a câmera está em você, o seu rosto se torna o palco. Ele é sua arte. E tudo faz parte: o olhar, sua boca. É seu dever tornar os filmes genuínos.”

Listen To Me Marlon, Inglaterra, 2015. Direção: Steven Riley. Roteiro: Steven Riley e Peter Ettedgui. Com: Marlon Brando. Documentário. Duração: 103 minutos.

Como um poema sonoro, Listen to Me Marlon contempla mais do que o mito; o ser humano. Não é o que percebemos de Marlon Brando, sua influência ou as perspectivas diferentes sobre suas ações, ainda que tudo esteja lá; é a visão do artista sobre si, e suas confidências. 

Marlon não liga pra o que os outros pensam dele. Mas para o que ele sente dentro de si. Assim, o documentário serve como um tradutor das maneiras, anseios e neuras do ator, que se relaciona consigo mesmo com uma honestidade acolhedora: ao falar sobre sua compulsão por comida, por exemplo, Marlon Brando revela sentir que ela é sua única amiga, quando chega em casa; igualmente, alguns detalhes de sua vida sexual surgem à tona, algo que se torna quase triste quando o ator assume que o seu pênis passou a ter agenda própria e que pouco é racional sobre esse estilo de vida.

Listen To Me não parece um pedido de socorro, é apenas um retrato. Que fala sobre problemas paternais, o mundo de negócios, onde a arte é pouco apaixonante, e a popularização do método é uma decorrência da busca pelo tom mais tangível. “Todos atuamos, alguns são pagos para isso”, pensa Marlon Brando sobre seu papel na indústria.

Afinal, o quanto podemos entrar no mundo dos bastidores, com Brando se entregando, expondo-se, em um último retrato? Em cada sequência, o documentarista Steven Riley se esforça para não ser evasivo em nenhum dado: tornando a figura do ator trágica e icônica, ao mesmo tempo.

Se a comparação entre a atuação e uma luta de boxe que o ator faz durante o segundo ato é homérica, o documentário é um acréscimo mais humano ao que seria o maior pugilista de todos, que continuamente nos nocauteou: com seus gestos, atitude, olhares e, claro, sua voz.

17 de novembro de 2015

Olmo e a Gaivota

Olmo & the Seagull, Dinamarca/Brasil/França/Portugal/Suécia, 2015. Direção: Petra Costa e Lea Glob. Roteiro: Petra Costa e Lea Glob. Elenco: Olivia Corsini, Serge Nicolai, Pancho Garcia Aguirre. Duração: 87 minutos.

Poucas personagens são tão pertinentemente contemporâneas quanto Olivia (a brilhante Olivia Corsini), que empresta sua personalidade, físico e psique para as lentes de Petra Costa e Lea Glob desenharem a percepção da mulher moderna na sociedade e como ela pode ser prisioneira dentro de sua própria realidade. É quase num grito de socorro que transcorre as discussões de Corsini e Nicolai, os quais transitam entre as fases mais instáveis de um relacionamento: se o homem parece ter a compreensão sobre a situação da mulher, num primeiro momento, logo passa a se mostrar mais individualista com a nova rotina do casal.

Desta forma, Petra e Lea cativam por constantemente nos manter próximos de Olivia e a dubiedade que o bebê traz à sua vida. Se no início, as intenções dela de continuar sua carreira são demonstradas num jantar, onde ela defende que um filho não significa abnegação da vida e carreira; o instante posterior, que descobre ter que ficar de repouso para manter o bebê vivo, acaba soando muito mais forte para o futuro da personagem – agora, tendo que repensar praticamente tudo. As diretoras conseguem, igualmente, demonstrar a forma como a mulher pode ser descartada de um trabalho por uma gravidez ou como até pessoas próximas indicam que a tarefa da mãe é exatamente direcionar atenção as questões domésticas, quando o filho vira uma realidade.

Fica difícil não simpatizar com o sofrimento de Olivia, portanto, que tenta a todo custo ter sua liberdade. Até as coisas mais simples, como o fato das horas do marido fora de casa, antes não sentidas, pelo contato, tornam-se imprescindíveis para o equilibrio dela. É o amor que a mantém psicologicamente saudável. Deste modo, desde a primeira ligação de Olivia e Serge separados por uma porta, enquanto ela faz o teste de gravidez, no embalo de uma música, a cumplicidade se mostra importantíssima. Não à toa, a forma que a reconecção do casal se dá justamente no mesmo lugar, quando Serge acha na música com os amigos uma maneira de trazer Olivia de volta.

Ainda que o estilo de Petra na narração em off e nos flashbacks ainda destoem da realidade de Olivia e Serge, Olmo e a Gaivota é um documentário importantíssimo que nos transporta para uma ótica feminina sobre o nascimento, a qual confronta as concepções machistas persistentes dentro de uma sociedade que vê a maternidade como uma responsabilidade exclusiva da mulher. 



12 de novembro de 2015

007 Contra Spectre

Spectre, Inglaterra/EUA, 2015. Direção: Sam Mendes. Roteiro: John Logan, Neal Purvis, Robert Wade, Jez Butterworth, baseado na história dos três primeiros. Elenco: Daniel Craig, Léa Seydoux, Christoph Waltz, Ralph Fiennes, Monica Bellucci, Ben Whishaw, Naomie Harris, Dave Bautista, Andrew Scott. Duração: 148 minutos.

Após o filme mais autoral de James Bond, é no mínimo confuso que Sam Mendes tenha proposto homenagear uma franquia que havia decidido esquecer previamente. Interligando a “era Craig”, o inglês tenta construir uma obra romântica, aventureira e dramática ao mesmo tempo, mas sendo eficiente só na construção de um passatempo esquecível.

Não que Spectre não tenha sequências extraordinárias ou bem pensadas por Mendes. Muito pelo contrário, o diretor acerta na maneira de lidar com a instabilidade moral do personagem de Craig através dos filmes – observe que, se antes o víamos chegar por trás de um criminoso para dizer seu nome antes de matá-lo, a mesma cena retorna em Spectre com uma conclusão diferente: Bond encara Blodfeld de frente, na mira de sua arma.

Porque James Bond é um homem mudado. O início brutal de Cassino Royale e o auge impiedoso de Quantum of Solace deram lugar a necessidade de trabalho, hiperatividade e conflitos internos de Skyfall e Spectre.

É parte de sua vida continuar sobrevivendo, sem a oportunidade de parar ou pensar no que lhe fez/faz puxar o gatilho. Uma parte da era Dalton, que é exatamente retomada quando o britânico é confrontado, num momento de fraqueza, com a promessa feita ao pai de Swann – talvez um dos momentos mais vulneráveis do agente na franquia, que precisa pensar sobre uma ação que na cabeça dele “precisava ser feita” naquele momento.

Vesper Lynd, nesta perspectiva, continua a personagem mais importante da quadrilogia, quando observamos a motivação do agente em salvar Swann de um desastre parecido com o que vitimou a personagem de Lynd. Ele não está salvando Madeleine, mas a metáfora do amor de sua vida. Não a deixará novamente. O que, igualmente, denuncia o lado que tomará no clímax: aonde ir.

A sinalização de uma coesão narrativa é admirável, portanto, mas é algo que Mendes não investe tanto quanto deveria. Apenas afirmando superficialmente o papel de Blofeld nos filmes anteriores ou a participação de outros na trama, o diretor também procura montar um conjunto de homenagens a inúmeros filmes do 007 – antes da saída definitiva. Estão lá: Moscou Contra 007 (no personagem de Bautista), as saídas extravagantes de Brosnan (as lutas no helicóptero, a lancha, a saída pela janela no México), o conflito existencial de Dalton (na mesa com Swann), o amor influente na vida do personagem (o filme de Lazenby) e, claro, o humor brega de Moore (com menos intensidade). Mas sempre gratuito.

Mendes acredita no poder da franquia, claro. Mas acaba criando um exemplar genérico e esquecível, num ano com tantos outros filmes eficientes do gênero. 



31 de outubro de 2015

Os 150 melhores filmes de terror dos últimos 15 anos


Nos últimos quinze anos, o cinema de terror foi marcado por diferentes tentativas de ressuscitar subgêneros, alavancar o potencial de novas franquias e pela infindável quantidade de homenagens aos filmes setentistas/oitentistas, responsáveis pela formação de grande parte dos profissionais atuais. Surgiram grandes nomes e grandes filmes. Por um tempo, o found footage foi um auxílio gigantesco para os independentes, o mumblegore igualmente uniu uma parcela dos realizadores para trabalhos em conjunto, frutos de pouco capital e mais iniciativa. Com o panorama de mais ideias e menos dinheiro para realizá-las, os últimos anos ocasionaram alguns exemplares que automaticamente se tornaram seminais, deixando para trás a terrível década de 90. Definitivamente. 

A seguir, além de indicar cenas importantes das obras (os FYC), listei 150 filmes imprescindíveis para desvendar o gênero nos últimos 15 anos: 

150. Terror no Pântano (Hatchet, EUA, 2006)

Adam Green costuma construir seus terrores com uma dose de cinismo, como faz no simpático Digging Up the Marrow, onde brinca com sua própria filmografia. Embora tente sempre procure providenciar algum drama para a história. Na sua franquia Terror no Pântano, o original é o que mais se aproxima da sua pretensão máxima: construir um slasher autoparódia eficiente para contar a história de Victor Crowley. 

FYC: Após achar que está a salvo, o personagem de Joel Murray tem a cabeça completamente girada e arrancada pelo assassino.  

149. Styria (Hungria, 2014)

Numa continuação lógica do terror vampiresco atual, é um retrato provocante do isolamento e da renegação da família proveniente de uma garota que "grita" por mistério.


FYC: Antes de qualquer marca no pescoço de sua vítima, Lara enfia um caco de vidro no local, como se não quisesse tocá-la.  

148. Sobrevivente (Backcountry, Canadá, 2014)

Em sua estreia à frente de longas-metragens, Adam MacDonald se desprende da proposta de inúmeros filmes do subgênero, envolvendo-nos num thriller crescente e de bom gosto. 

 
FYC: A tensão gerada pelo estranho personagem de Eric Balfour, que produz uma desconfiança preconceituosa do casal Jenn e Alex, quando a preocupação deles deveria ser com a natureza animal, não a humana.  

147. A Estrada (The Road, Filipinas, 2011)

Histórias entrelaçadas não são fáceis em nenhum gênero, o que dificulta as tentativas de Yam Laranas de expor os horrores da estrada que movem seu argumento. Talvez, a obra seja menos efetiva do que a pretensão inicial do diretor supõe, mas é intrigante e é elegante o suficiente. 


FYC: A morte de Lara no banco de trás de um carro pegando fogo. 

146. Quarentena (Isolation, Irlanda, 2005)

Nos últimos anos, a quantidade de filmes de infecção generalizada que se alastrou rapidamente pelo globo foi quase incontável. O filme de Billy O'Brien concentra sua atenção numa pequena comunidade rural, onde a praga é gradativa, natural e tensa.


FYC: Algo começa a subir pelas cobertas de Mary. 

145. Insensíveis (Insensibles. França, 2012)

Juan Carlos Medina pode dar voltas e mais voltas, mas consegue acrescentar a inevitável mensagem: num mundo em que o espectro da guerra sobrevive, a insensibilidade à dor é um estudo que pode render resultados impressionantes. 


FYC: Ao descobrir sua "insensibilidade", uma menina se ateia fogo e outros tentam fazer o mesmo, sem saber que não possuem essa mesma natureza. 

144. Não Documentado (Undocumented. EUA, 2010)

Na constante discussão sobre a imigração nos EUA, em pautas reacionárias, o filme reúne o sadismo do subgênero com o mockumentary, ressaltando uma série de pensamentos "patrióticos" que torna toda a estrutura crível demais e, por consequência, mais intensa.

FYC: Numa espécie de inquisição, um dos imigrantes é questionado sobre aspectos culturais americanos para a decisão de sua sobrevivência ou morte.

143. The Children (Inglaterra, 2008)

Desde a primeira aparição de destaque de uma criança no horror, em O Golem, o uso da figura infantil sempre intrigou, pelo poder de sua dubiedade. Aqui, a fragilidade familiar e o isolamento correlacionam a mudança comportamental dos pequenos com o afastamento de seus pais. 


FYC: A única opção de uma mãe, após ser atacada na barraca pelo seu filho, é matá-lo.

142. Mistério da Passagem da Morte, O (The Dyatlov Pass Incident. Rússia/EUA, 2013)

Típico caso de que nem as atuações inverossímeis ou a direção imprecisa de Renny Harlin sabotam toda a estrutura belissimamente executada pela fotografia, que sempre nos envolve no isolamento daquelas pessoas ou com o futuro delas.


FYC: A intrigante história da expedição que inicia o longa.

141. Hollow (Inglaterra, 2011)

Clássico exemplo de found footage que compreende que o charme do subgênero reside no relacionamento interpessoal dos protagonistas e as consequências de suas ações.


FYC: Um dos amigos deixa os outros para trás e começa a voltar para a cabana sozinho na escuridão. 

140. Livide (França, 2011)

Uma alegoria macabra e insana que dá vida aos seus personagens estranhos, dentro de uma mistura de gênero constantemente instigante.


FYC: O instante que os três amigos entram na casa. 

139. Casa dos Sonhos (Wai dor lei ah yut ho. Hong Kong, 2010)

Seu maior horror é a economia mundial, o que traveste seu drama em um thriller macabro e eficiente.


FYC:  Qualquer cena envolvendo o martelo. 

138. The Final Girls (EUA, 2015)

Não só reinventa particularidades dos slashers para derivar nas excelentes homenagens, principalmente para Sexta-feira 13, como também contrabalança sua espirituosidade com o drama presente no relacionamento entre mãe e filha - resultando na cena mais linda do filme.


FYC: A abertura com Kumba-no e Bette Davis Eyes.

137. Mulberry Street - Infecção em Nova York (Mulberry St. EUA, 2006)

Poucos começaram uma filmografia de forma tão concisa quanto o promissor Jim Mickle. Em seu primeiro filme, o americano foge da natureza cômica de seus correlacionados, culminando em algo mais sádico e trágico.



FYC: Dentro de um bar, acompanhamos o desenvolvimento da infecção e da mutação dos clientes.

136. Plataforma do Medo (Creep. Inglaterra, 2004)

É possível o menos ambicioso e mais falho filme do brilhante Christopher Smith, porém com um primeiro ato espetacular e com o apuro estético sempre interessante do inglês.


FYC: Kate observa seu stalker ser puxado para fora do trem. 

135. Identidade (Identity. EUA, 2003)

A carreira de James Mangold é conhecida por seus altos e baixos, mas Identidade é certamente o ponto mais alto que já atingiu. Ao abordar dez estranhos que se veem emboscados num motel durante uma tempestade e começam a morrer, um a um, o diretor nos insere literalmente dentro da mente de um assassino, o que faz o percurso ser muito mais interessante do que apenas um thriller comum.

FYC: Ed descobre que é apenas uma das personalidades de Malcolm Rivers.   

134. Byzantium (Irlanda, 2012)

Como se vampiros fossem andarilhos que servissem como uma espécie de intermediários entre a vida e a morte, a profundidade que Neil Jordan produz na platônica amizade entre Ella e Clara (nos mesmos moldes de Lestat e Louis) termina conduzindo o terror de uma forma muito mais triste do que aventureira, algo que curiosamente se afasta do que sempre foi seu forte.


FYC: Hanna prova sangue pela primeira vez. 

133. Entes Queridos (The Loved Ones. Austrália, 2009)

Apresentando seus personagens com um fascínio pela loucura e com uma conotação incestuosa, Entes Queridos se compromete emocionalmente com o seu sadismo, o que desperta uma sensação curiosa.


FYC: A dança vulneravelmente emocional (e chocante) de pai e filha. 

132. Boa Noite, Mamãe (Ich seh, Ich seh. Áustria, 2014)

A intensidade com que a narrativa é sobrecarregada, aliada aos tons fúnebres e ambíguos, lança ao espectador uma angústia sintomática e provocante. Severin Fiala e Veronika Franz retornam às perguntas levantadas por Honeymoon e, em menor grau, por A Pele Que Habito: quem está vivendo na mesma casa que você?


FYC: Os gêmeos amarram a mãe em sua cama para descobrir quem é a invasora e o que ela fez com a mãe deles. 

131. Último Trem, O (The Midnight Meat Train. EUA, 2008)

O longa-metragem de Ryûnei Kitamura transita entre a obsessão e o limite do retrato, tornando-se um testemunho primitivo da imitação, pegando como gancho o submundo e a virilidade do personagem de Vinnie Jones.


FYC: O vagão de mortos.

130. Espinhos (Splinter. EUA, 2008)

Antes de tentar a sorte com a franquia O Grito, no terceiro exemplar, o diretor Toby Wilkins estreava neste interessante sci-fi, que se juntava ao apelo de Cabana do Inferno, ao encontrar tons cômicos na abordagem macabra.


FYC: A ajuda chega na pele de uma policial que desconhece o monstro que os cercam no poste de gasolina; por pouco tempo.

29 de outubro de 2015

Ponte dos Espiões

Bridge of Spies, EUA, 2015. Direção: Steven Spielberg. Roteiro: Matt Charman, Ethan Coen, Joel Coen. Elenco: Tom Hanks, Mark Rylance, Alan Alda, Austin Stowell, Jesse Plemons, Dakin Matthews, Amy Ryan, Sebastian Koch. Duração: 141 minutos.

Não há tempo para discutir governos nos últimos filmes de Steven Spielberg; apenas as ações de homens e suas consequências. É a perspectiva humana, o que importa. Deste modo, a primeira cena de Ponte dos Espiões é reveladora ao propor um de seus principais personagens, o Coronel interpretado pelo extraordinário Mark Rylance, num literal autorretrato, onde podemos observar o homem, o seu reflexo e o retrato que pinta de si mesmo. Comum ao longo da narrativa, o triplo ponto de vista acerca de uma mesma situação é sempre fascinante: desde três advogados se reunindo até duas recepcionistas com um vaso de flores ao centro do quadro, o cineasta busca constantemente um intercessor para valorizar seus opostos.

James B. Donovan é o principal intermediário escolhido por Spielberg, sob esta ótica.  Em sua apresentação, o destaque é sua fala: "Não é meu 'cara'. É meu cliente. Há uma diferença". Ali, a sua trajetória está traçada: o advogado é encurralado pelos sócios no escritório com o uso de "dever patriótico"; fica numa posição desconfortável entre dois opostos, enquanto a bandeira americana vibra no fundo; vê-se contra a parede, na prisão, junto com o seu cliente, num plano belíssimo; para, ao fim, tornar-se o interlocutor que sempre se esperou dele, numa negociação em uma ponte pênsil. 

Spielberg se importa com o futuro, em Ponte dos Espiões, mais do que qualquer outra coisa. Assim, mais uma vez, como em Lincoln, o diretor prefere filmar as reações infantis em cenas chaves - se antes, o assassinato de um presidente era trocado pela comoção de uma criança; aqui, um julgamento de um tribunal passa para uma sala de aula, com todas as crianças de pé, jurando amor à bandeira, para depois assistir ao país lançando uma bomba atômica no Japão. 

Numa guerra de informações, Spielberg discorre sobre julgamentos prévios e escancara nossas realidades em diferentes trens. Ao Donavan analisar uma cena de jovens pulando grades para assaltar uma residência, portanto, compreendemos que ainda que estejamos em linhas distintas, o trilho pode ser o mesmo.   


26 de outubro de 2015

Sicário: Terra de Ninguém

Sicario, EUA, 2015. Direção: Denis Villeneuve. Roteiro: Taylor Sheridan. Elenco: Emily Blunt, Benício Del Toro, Josh Brolin, Daniel Kaluuya,  Jon Bernthal, Victor Garber. Duração: 121 min. 

É um cinema de extremos, o de Denis Villeneuve: o controle da mente, em Homem Duplicado; os horrores da guerra, em Incêndios; os atos violentos cultivados pelo desespero, em Suspeitos. Em Sicário, outra vez, o diretor canadense oferece seu niilismo perverso como fruto de compreensão - quais ações levaram os personagens a chegarem até aquele ponto: basicamente o que movimenta sua filmografia.

Assim, Villeneuve procura desculpas para seu sadismo ao demonstrar uma verdadeira zona de guerra nos EUA, fazendo com que a forte líder de operações do FBI, Macy (Emily Blunt), padeça diante dos horrores e da hostilidade que observa no seu cotidiano. É a rua contra a burocracia, em Sicário. Entretanto, numa visão unilateral. 

Se de um lado o talento de Villeneuve é destacado ao quebrar expectativas ou construir uma tensão sintomática, como a vulnerabilidade do policial mexicano (de costas, na cama) demonstra em sua primeira cena, ou nos corpos mutilados expostos, o cinismo com que encara os personagens de Blunt e Daniel Kaluuya afasta. Principalmente, após a brutalidade e a submissão deles, quando o canadense arrisca criar uma humanidade que não existe mais, vide a cena em que os olhos aterrorizados dos dois são os destaques no túnel.

No fim, o registro de um jogo de futebol sendo pontuado por sons de tiros se torna tão incômodo quanto nossa convivência com os personagens de Del Toro e Brolin. Mas não por intenção do diretor. 


*Crítica originalmente produzida para o Diário Catarinense

22 de outubro de 2015

Beasts of no Nation


Idem, EUA, 2015. Direção: Cary Joji Fukunaga. Roteiro: Cary Joji Fukunaga, baseado no livro de Uzodinma Iweala. Elenco: Abraham Attah, Idris Elba, Emmanuel Affadzi, Ama Abebrese, Francis Weddey, Emmanuel Nii Adom Quaye. Duração: 137 minutos.

Numa das cenas mais emblemáticas de Beasts of no Nation, o Comandante inicia um cântico com seu combatentes para durante a dança pré-guerra poder ouvir o coração deles batendo, esperando pelo momento da batalha.  Na guerra física e mental proposta por Cary Joji Fukunaga, as crianças e a juventude são as principais baixas dentro da realidade mortal que elas passaram a fazer parte.

A figura escolhida para dar vida à trajetória de uma criança da ingenuidade para a vingança é Agu, que vivia em uma comunidade dizimada pela guerra civil. É a voz do filme, literalmente - aliás, talvez o único problema, ao criar um conflito entre a brutalidade evidenciada e a filosofia existencialista da narração. A narração de Agu está lá para protegê-lo, não fazer com que o espectador o julgue. Ele procura entender o que está fazendo, quais as ramificações e o que ela está perdendo neste percurso. Soa prejudicial, já que compreendemos os limites que a criança chega ou a abordagem que ela toma.

Desta forma, quando Fukunaga é mais sutil, o filme igualmente ganha uma solidez muito maior. Um dos melhores enfoques do diretor, por exemplo, é a liderança d'O Comandante e seu relacionamento com Agu e Strika. Afinal, o personagem é a figura perdida na vida daquelas crianças, o pai que elas não possuem mais. É o elo de ligação delas entre a guerra e a vingança. Quem os ensina a ser como são.

Nesta perspectiva, a voz do imenso Idris Elba intercala entre simpatia e austeridade, fazendo com que o choque seja muito maior na cena em que se aproveita da fragilidade de Agu, fazendo com que, antes, este acredite que só quer o seu bem e que guarde segredo. Na mesma linha, a voz do Comandante sendo constante no primeiro assassinato de Agu ("Eles mataram seu pai") é reveladora, pois evidencia a extrema influência da figura paterna naquele crime que assistimos.


De tal modo, quando nos deparamos com mísseis tomando os céus, aos olhos daquelas crianças de vigia, compreendemos que no mundo delas, não importa o que aconteça, não há mais estrelas cadentes ou fogos de artifício. Apenas guerra.  

19 de outubro de 2015

Colina Escarlate, A

Não fui, na infância, como os outros
e nunca vi como outros viam.
Minhas paixões eu não podia
tirar de fonte igual à deles;
e era outra a origem da tristeza,
e era outro o canto, que acordava
o coração para a alegria.
Tudo o que amei, amei só.
Assim, na minha infância, na alba
da tormentosa vida, ergueu-se,
no bem, no mal, de cada abismo,
a encadear-me, o meu mistério...
Edgar Allan Poe, Só.

Crimson Peak, EUA, 2015. Direção: Guillermo del Toro. Roteiro: Guillermo del Toro, Matthew Robbins. Elenco: Mia Wasikowska, Jessica Chastain, Tom Hiddleston, Charlie Hunnam, Jim Beaver. Duração: 119 min.

"Duas pequenas borboletas pousam numa lamparina, que aos poucos perde sua intensa luz natural e parece ser sugada por elas". O trecho anterior poderia ser o princípio de uma história trágica de Edgar Allan Poe, mas não o é. É o início de uma bela metáfora cultivada por Guillermo del Toro em sua narrativa, A Colina Escarlate, onde o espectro mais vital de uma família, vinculado à radiante forma de Mia Wasikowska, torna-se atormentado por dois imagos (se nos permitirmos continuar na metáfora), os quais passam a se alimentar de sua juventude, "pureza virgem", dinheiro e solidão.

Na figura de Thomas Sharpe, o novo, o atraente, o mistério que chega na vida de Edith, tal como um poema de Poe, Hiddleston transforma-se na figura gótica sedutora de um estrangeiro que ludibria uma pequena cidadezinha e o tesouro de uma das principais famílias da região. É o Christopher Lee de Guillermo del Toro, cuja dualidade no olhar denota um constante conflito entre franqueza e parcimônia. Suas tentativas desesperadas de consolar uma cada vez mais vítima, Edith, tornam-se uma tentativa de rendição que não já é mais possível. Thomas, afinal, também é uma vítima.

Desta forma, num cruzamento incrível entre Hammer e Hitchcock, del Toro usa o "prometido" ao seu favor. Criando uma obra de pistas/recompensas que é sábia não só em administrar cada individualidade, como também guarda o inesperado em seus personagens. E se os fantasmas surgem como lembranças ou mensageiros, o cineasta brinca com o terror que eles produzem em nós, não importando a natureza da mensagem. Observe a maneira com que os enquadramentos no corredor são feitos pelo mexicano e como ele nunca deixa de entregar o que ele quer - neste sentido, caso um fantasma seja avistado, ele irá aparecer; não importa se isso servirá ou não como susto na trama.

Igualmente, caso del Toro buscasse homenagens impassíveis ao terror clássico, Dr. Alan McMichael nasceria com o único intuito de servir como âncora para a frágil Edith Cushing (Cushing!), que seria salva no último minuto pelo seu cavalheiro sem armadura; correto? Errado. E é aí que a narrativa do mexicano se torna ímpar. Ao começar pela natureza feminista de sua obra, que já é denunciada na maneira dispare como Edith Cushing é vista na sociedade, quase independente, algo que inclusive irá despertar a atenção e amor de Thomas, que acaba se lembrando da própria irmã. Em poucos minutos, Edith é renegada por um livro "masculinizado" para a época, é tratada com desdém pelas mulheres por seu estilo inusitado de não estar à procura de um marido e nunca se deixa influenciar pelo charme do doutor Alan. Ela constrói seu próprio caminho para chegar até a mansão da Colina.

Lucille, interpretada soberbamente por Jessica Chastain, é a única que percebe a força de Edith. A luta final entre as duas não serve apenas como um clímax esperado, mas como um duelo entre antagonistas, paradoxos de uma mesma figura. Cushing x Lee, de outra época. As mulheres são a força de del Toro e é com elas que chegamos às revelações do castelo. Da estrada de sangue que nos conduz até ele - analise, aliás, as marcas no chão que a carruagem passa.

Não à toa, a única nudez permitida no filme é a de Thomas. Uma figura que se rendeu pra sexualidade há muito tempo. E vive por ela. Assim como morrerá. 


20 de agosto de 2015

Retorno a Ítaca, O

Retour à Ithaque, França/Bélgica, 2014. Direção: Laurent Cantet. Roteiro: Laurent Cantet, Leonardo Padura, Lucia Lopez Coll. Elenco: Isabel Santos, Jorge Perugorría, Fernando Hechevarria, Néstor Jiménez, Pedro Júlio Diaz Ferran. Duração: 95 minutos.

É difícil não se sentir fisgado pela proposta narrativa do interessante Laurent Cantet, em O Retorno a Ítaca. Conferindo uma pessoalidade tão forte aos seus personagens que as discussões acaloradas parecem como aquelas em que sentimos amigos se exaltar em mesa de bar, os amigos dançam, divertem-se, refletem, criticam e amam – sem ordem pré-estabelecida. Claro que o cineasta sintetiza a evolução da conversa numa linha crescente, mostrando que da chegada de Amadeo em Havana até o sol nascer muito se desenvolve em dissabores e amarguras, mas sem que para isso deixe a sensibilidade de lado.
E é sempre muito bem humorada e inteligente, a forma como Cantet discute família, sociedade, casa e amizades. A própria inserção de Eddie, como o alívio cômico que tenta mudar os assuntos para evitar grandes conflitos, mas que também traz o seu, indica essa natureza. Sendo honesto com sua proposta, afinal, sem se interessar em grandes pontos de virada, a leveza do filme acaba influenciando ao seu favor, e faz com que nos importemos com o teor das conversas entre Amadeo, Eddie, Tanía, Rafa, Aldo.
Cantet é um diretor que extrai muito do pouco. E aqui prova mais uma vez este talento.

18 de agosto de 2015

Obra

Idem, Brasil, 2014. Direção: Gregório Graziosi. Roteiro: Gregório Graziosi e Paolo Gregori. Elenco: Irandhir Santos, Júlio Andrade, Lola Peploe. Duração: 80 minutos. 

Concentrando todas as suas atenções num homem atormentado pelos pecados do avô, Obra é um longa-metragem instável que simula uma sensibilidade apenas pelo comprometimento físico e narrativo do talentosíssimo Irandhir Santos. Ofuscando uma dramaturgia pobre, onde os personagens se acusam como se estivessem numa novela das 9 (“como você dorme durante a noite?”), o filme de Graziosi apenas se sustenta na luta de João Carlos quanto ao seu corpo e consciência. E é interessantíssimo como os dois se interligam aos poucos na trama, como indica o começo da manhã do protagonista em três oportunidades: a primeira, após uma transa com duas mulheres; a segunda, acordando para um alongamento em casa, com o corpo já dolorido; a terceira, a demora angustiante ao colocar a roupa para o trabalho.


O paralelo entre vida profissional e pessoal, assim sendo, é suficientemente competente pelo drama vivido por um inspirado Irandhir Santos, noutra grande atuação. Avalie, igualmente, que podemos notar grandes problemas na família sem precisar adivinhar: o casal falando outra língua um com o outro ou a falta de respostas. Da mesma forma, o arquiteto fala em legado às vésperas do nascimento do filho como se levasse o mundo nas costas, uma simbologia bacana, mas que escorrega no ritmo proposto.

É um filme superficial, afinal, onde os prédios se sobrepondo a figura humana carrega um reflexo para a linha narrativa.