28 de janeiro de 2015

Jogo da Imitação, O

The Imitation Game, Inglaterra/EUA, 2014. Direção: Morten Tyldum. Roteiro: Graham Moore, baseado no romance de Andrew Hodges. Elenco: Benedict Cumberbatch, Keira Knightley, Matthew Goode, Rory Kinnear, Allen Leech, Matthew Beard, Charles Dance, Mark Strong. Duração: 114 min.

Acredito que muitos de nós procuramos uma forma de companhia, de não ficarmos sozinhos e buscar algo que seja um escape de uma realidade inodora. O próprio cinema, por exemplo, funciona como um motivador nato para isto, pois oferece a oportunidade de fantasiarmos, criarmos empatias com desconhecidos e fazer parte de uma história. Gostaria de dizer que este pensamento é meu, mas devo ter ouvido ou lido em algum lugar.

Em O Jogo da Imitação, as nuances de Alan Turing se desenrolam até chegar ao aspecto central: desvendar quem foi o homem. Mas como? Se apenas analisarmos o lado emocional,  a narrativa é um exercício intimista comovente. O homem por trás da grande máquina, por trás do pensamento digital, sistemático, apenas fez tudo por... amor. Ou pela necessidade de companhia. Algo que não fizesse dele o que mais temia: alguém solitário. A escolha para suprir a carência emocional é a mais natural possível, Christopher, seu primeiro companheiro, sua primeira relação, seu primeiro amor. Quando, por algum motivo, Alan pensou que não estava mais sozinho. Existia um semelhante. Que amava, desejava e pensava como ele. Que o direcionou, importou-se e deixou ele ser ele mesmo - mesmo que nunca completamente.

Num mundo em que a homossexualidade era um monstruoso crime de obscenidade, é revelador o título, pois Alan era exatamente uma máquina, um imitador, que buscava se reprimir para a tal "normalidade" que tanto descrevem no filme. As técnicas e gestuais do talentosíssimo Benedict Cumberbatch, neste panorama, são trabalhos brilhantes exatamente por demonstrar sutilmente características únicas da personalidade daquele ser humano. Um alisar pontual no cabelo, evidenciando uma característica (assumidamente preconceituosa) feminina, uma preocupação com a sua aparência, com o uso do deboche e da indiferença para se afastar do compromisso, ou até mesmo seu próprio ego.

Tudo é evidenciado constantemente num trabalho magnífico, em que a leveza característica da atuação, combinada com o cinismo imperante do personagem, criam um paradoxo belo. Afinal, Turing não é uma pessoa fácil, claro, e não precisa ser tratado como tal. É de sua própria essência ser um pretensioso mesquinho e arrogante - uma fachada que impôs a si; funciona e foge do tom caricatural normalmente visto em filmes do gênero, que tendem a abraçar uma humildade inexistente. Alan não era humilde, tampouco parecia se importar com sua própria genialidade. Era alguém em busca de companhia. Quem criou uma máquina para sentir afeto de alguma forma. É interessante, não? Que a internet tenha se transformado no que o próprio Turing criou para ser: um sistema computadorizado que lhe oferece infinitas possibilidades e uma maneira de não ficar mais sozinho.

Morten Tyldum, infelizmente, prefere contar a história como se estivesse filmando um telefilme. Com usos de fade in/out, uma estrutura de diálogos constrangedores (como aquela em que três personagens diferentes dizem: "às vezes, as pessoas que menos esperamos apresentam as coisas mais incríveis"),  rimas visuais que pouco acrescentam (a passagem de Alan e Hugh para a amizade entre aquele e Christopher) e, claro, a forte adocicação  desnecessária: o instante em que os personagens se reúnem para defender Alan é confuso, deslocado e inverossímil. Da mesma forma, é duvidosa a insinuação de um triângulo amoroso que nunca se forma e a própria importância dada à homossexualidade do protagonista no final da trama não reverbera da forma como deveria, fazendo com que soe uma miragem num lugar que já era naturalmente refrescante.

Mas com seus problemas, frustrações e falta de avanço biográfico, O Jogo da Imitação não falha em uma coisa imprescindível: a figura central de seu filme. Afastado de outras pessoas, com braços que funcionam como uma espécie de proteção, isolado, obcecado por sua máquina e egocêntrico (é revelador quando assustado com a incapacidade de processamento de sua máquina, ele se sente angustiado), Alan Turing nunca transparece ser uma pessoa fácil ou totalmente compreensível. Em compensação, é uma figura que pode nos lembrar do tão frágil que somos e de como também buscamos sempre uma simples companhia. Aqui, a dele.


24 de janeiro de 2015

Foxcatcher: Uma História que Chocou o Mundo

Foxcatcher, EUA, 2014. Direção: Bennett Miller. Roteiro: E. Max Frye e Dan Futterman. Elenco: Steve Carell, Channing Tatum, Mark Ruffalo, Sienna Miller, Vanessa Redgrave. Duração: 129 min.
Dono de um metódo que poderíamos diagnosticar como procedural, Bennett Miller é um dos diretores mais promissores da atual indústria norte-americana. No seu novo filme, Foxcatcher, o cineasta é extremamente maduro na forma como lida com cada um de seus personagens, transformando o filme não em uma narrativa de um homem só, mas de múltiplas camadas: sociais e introspectivas. 

Neste panorama, o personagem de Channing Tatum (surpreendentemente bem) é o fio condutor da tragédia. É nele que podemos observar inteiramente o declínio americano. O semblante forte, as marcas de treinamento, sua intensidade, frieza, tudo é trocado pela facilidade do poder e suas sequelas. O poster da conquista da honra e seu patriotismo, o desejo de ser reconhecido por um defensor de seu país, culmina numa cena avassaladora em que ouvimos os gritos de USA num inesperado terreno para ele.
O irmão interpretado pelo excelente Mark Ruffalo, por outro lado, reage disciplinarmente, mas depositando os votos econômicos totalmente em sua família. É o equilíbrio entre a luxuria e a extravagância de du Pont e a ingenuidade e humildade de Mark. A queda, portanto, é maior e muito mais inesperada. Enquanto isso, é John du Pont que precisamos desvendar. O seu critério misterioso no início, a influência constante e sua transformação são resultados de um homem paradoxal. Mesmo que seu nome e fortuna compre tudo, ele segue o garoto frustrado que tenta agradar sua mãe e busca arranjar alguma companhia – duas cenas são perfeitas ilustrações, aliás: a primeira, o treinamento forjado que faz com sua equipe; noutro momento, a maneira que deposita suas expectativas em Mark, tratando-o como único amigo, mas, muito mais do que isso, ancorando-se nele para vencer a “figura” de sombra. Não à toa, é exatamente depois de brigar com sua mãe, que du Pont dirige sua raiva e frustração para a sua própria figura refletida em Mark: afinal, como ele poderia achar que estava na hora de tomar decisões?!
Carrel, assim sendo, é a força dramática da narrativa. Estabelecendo o seu olhar singelamente triste, inquieto, aliado a uma aparência de imponência frágil (o que seria conflitante por natureza), o ator é perfeito em tratar todo o declínio dos du Pont. De uma criança mimada, como mostra a cena em que, triste por não ter a metralhadora que queria em seu tanque, joga os papéis no chão, emburrado, para alguém que ‘fabrica’ as opiniões positivas sobre ele: tudo é pontuado intensamente por Carell. E é emblemático o seu olhar para o documentário que fazem sobre seu espírito de liderança, quando avalia que o belo discurso de Mark num evento de gala foi fabricado por ele. É exatamente aí que seu personagem só vê uma saída: a necessidade de deixar o seu passado e sua herança para trás. Seguir o seu próprio caminho e fazer sua própria corrida. Algo precisava mudar. Claro que, infelizmente, a solução foi a mais brutal.


20 de janeiro de 2015

Leviatã

Leviafan, Rússia, 2014. Direção: Andrey Zvyagintsev. Roteiro: Oleg Nogin e Andrey Zvyagintsev. Elenco: Elena Lyadova, Vladimir Vdovichenkov, Aleksey Serebryakov, Roman Madyanov, Anna Ukolova. Duração: 140 min. 

Indicando que uma sociedade feliz e bem servida é aquela em que bebida, carne e armas são exemplos de fartura, Leviatã é um finíssimo exemplo de como o humor negro pode intercalar o drama intenso e o colapso social e familiar. O diretor Andrey Zvyagintsev, afinal, raciocina acerca da destruição dos sonhos e futuro visualizada na demolição de uma casa. Mais que isso, analisa inteligentemente uma justiça que funciona para poucos e cria quase uma obsessão com os pequenos infratores. 

Assim, a lei sendo lida com extrema rapidez, como se fosse somente um cumprimento de metas, sem se importar com quem está sendo julgado, é um exemplo natural desse apelo; bem como o retrato de Putin com os olhos tapados no enquadramento, que salienta uma reunião na prefeitura para discutir uma chantagem. É notável, além disso, o terreno que o russo constrói para nos indicar que, sim, a justiça é ausente naquela região: numa excelente sequência com Dmitri procurando algum oficial para tratar de uma prisão ilegal. Do mesmo modo, o uso satírico da política é sempre inspirado, o que resulta no hilário tiro ao alvo com retratos de políticos. Sem contar a reveladora conversa entre um cardeal e um político, a qual denuncia dois tipos de poderes lascivos (“Você tem o seu território, eu tenho o meu!”).
Igualmente, a família também é fruto da análise do cineasta. Começando pela personagem de Elena, que se vê impedida em sua própria casa – e basta observar, neste caso, como a câmera sempre costuma ficar afastada dela, apenas se aproximando intensamente no momento em que beija Nikolai no primeiro ato; depois, as reações nos closes, onde notamos a primeira vez que Dmitri encanta Lilya (o instante em que ambos entram no mesmo quadro, bêbados e felizes. Uma felicidade que ela necessitava); e, finalmente, o despreparo familiar para lidar com perdas e instabilidade: Lilya se sentindo sufocada pelo braço do marido, o filho com complexo de édipo, a despreocupação com o paradeiro das crianças (“Onde estão os seus filhos?”), etc. 

Zvyagintsev faz do humor a sua principal arma, o que torna o desolador terceiro ato ainda mais cruel. Se num primeiro momento a briga de bêbados entre prefeito e desempregado era um gracejo popular; noutro, a sentença de que o “estado cuidará de alguém” surge amedrontadora. No tempo de instabilidade econômica, corrupção e a religião como instrumento propagador de ódio, o recado do russo acaba sendo muito mais brilhante do que poderíamos imaginar. Para ele: tudo é culpa de todos.