22 de dezembro de 2015

Pequena Morte, A

The Little Death, Austrália, 2014. Direção: Josh Lawson. Roteiro: Josh Lawson. Elenco: Bojana Novakovic, Josh Lawson, Damon Herriman, Ben Lawson, Patrick Brammall, Lisa McCune, Lachy Hulme, T.J. Power, Stephanie May, Kate Mulvany, Tasneem Roc, Kate Box, Darren Gallagher, Erin James. Duração: 96 minutos.

Extraindo sensibilidade de sua loucura verossímil, A Pequena Morte é uma comédia pessimista sobre os pequenos prazeres da vida. Não apenas as discussões hilárias dos casais acerca de seus fetiches ou vontades contam com um timing brilhante (“Nossa, mas eu sempre chego em má hora”), como também, apresentando todos os personagens como pessoas genuínas e palpáveis, o filme investe na comovente fragilidade do lar – além de levantar inúmeras reflexões impressionantes para um filme tão leve.

Dividido em quatro casos conjugais que se cruzam ao decorrer da narrativa, o longa-metragem dirigido pelo estreante Josh Lawson é certeiro na leveza com que explora seus temas, assim, rendendo cenas impagáveis, como a reação de Paul ao saber que a fantasia de Maeve é ser estuprada por alguém – e há de se aplaudir que o tom de cinismo nunca seja retraído, ficando fácil rir de algo tão complicado como o tema proposto. 

Os diálogos em que Paul reflete que não sabe se seria um bom estuprador e o amigo fala que isso é uma coisa boa são surpreendentes, aliás. Da mesma forma, o caso de tesão por lágrimas que cerca a vida de Dan e Evie é excelente: perceba que o que mais é tocante é a forma como que Evie tenta fugir de sua fantasia por se achar doente, não a graça em tudo aquilo; bem como a revelação de que não goza desde o dia do casamento é algo incrivelmente honesto.

Lawson desenvolve parábolas sobre o cotidiano, a rotina do sexo e uma forma de lidar com nossos maiores fetishes. Mesmo quando embarca em caminhos perigosos, como o uso da esposa ao dormir, a obra não perde seu fio condutor em nenhum momento: o seu absurdo. As músicas, do mesmo modo, corroboram com o tom proposto e satirizam as situações. A cena da tentativa fabricada de um estupro na garagem e a reação do marido ao acordar no hospital, apenas querendo saber se atendeu aos pedidos da futura esposa é assustadoramente comovente. Como não notar o amor de ambos, ainda que seja tão estranho? O mesmo para a relação do homem que deseja se tornar ator e usa cenários na cama para suprir suas carências.

Mas, talvez, o mais interessante de todos eles seja o relacionamento entre Monica e Sam, que gira através da imagem e dos sinais. Num cenário em que apenas a imagem pode tornar a vida aceitável para um surdo-mudo, a forma como o diretor lida com o disque-sexo e o primeiro momento em que os dois se apaixonam é inesquecível. E mesmo que o momento seja para provocar o riso, note que até a vida da atendente do tele-sexo surge para nos comprovar como, na realidade, os problemas estão em todo o lugar.

A Pequena Morte não é um filme esperançoso, afinal; é pessimista. As mentiras começam a se adaptar, na sequência. E o único momento em que as nossas vidas poderão se cruzar é numa tragédia.

18 de dezembro de 2015

Spotlight - Segredos Revelados

Spotlight, EUA, 2015. Direção: Tom McCarthy Roteiro: Josh Singer e Tom McCarthy. Elenco: Michael Keaton, Mark Ruffalo, Rachel McAdams, Liev Schreiber, John Slattery, Brian d'Arcy James, Stanley Tucci, Jamey Sheridan. Duração: 128 minutos.

Um dos grandes jornalistas do século XX, Gay Talese, tem uma frase sobre Nova York que poderíamos usar para qualquer região ou, em específico, a cidade de Boston, Massachusetts, onde o jornal The Boston Globe está sediado. "É uma cidade de coisas que passam despercebidas". Você tem as pequenas curiosidades, os eternos conhecidos, amigos de infância, os alcoólatras que perambulam pelas calçadas até achar o caminho de casa, onde suas esposas o esperam com a janta fria. Mas há segredos que não se discutem. Conhecidos ou não. Nunca discutidos. Não só na narrativa de Tom McCarthy, mas na essência da pauta jornalística americana, é o fator externo que influencia no interno.

Assim, já iniciamos a história do grupo Spotlight, coordenado pelo jornalista Walter V. Robinson, com o espectro do futuro imprevisível das reportagens impressas: tanto na demissão de um dos repórteres mais velhos e prestigiados do Boston Globe e na chegada do "forasteiro" Marty Baron, que passa a investir em pautas intocáveis, quanto um outdoor da AOL na frente do jornal. Afinal, é hora de encarar o futuro.

Com isso, o desenvolvimento da pauta jornalística proporcionado pelas elipses de Tom McArdle é certeira ao conferir o apego pelos detalhes dos repórteres, algo que é correspondido pelo uso das anotação ao invés do gravador. Tal como Todos os Homens do Presidente, o processo investigativo dos repórteres é compreendido e a convicção por trás do texto, do produto entregue aos leitores, evidenciada. Portanto, McCarthy torna a discussão sobre o jornalismo mundial, não apenas local, compreendendo a oportunidade que tem em mãos.

Constrói, igualmente, a vida pessoal daquelas pessoas com uma sintonia invejável com a realidade: naquela equipe de repórteres, não há espaço para romances. Os companheiros dos personagens são coadjuvantes, o trabalho é o protagonista. Assim, não só o detalhe da aliança no dedo de Robby é recorrente, mas também: o relacionamento superficial de Sacha, que só compartilha refeições; Matt, que o máximo que consegue é deixar recados/avisos para seus filhos na geladeira; e, claro, a sugestiva separação de Mike, ao observamos seu pequeno quarto recém decorado com pilhas de documentos.

Quando McCarthy escolhe abraçar o macrocenário da situação que os jornalistas se envolvem, o envolvimento passa a ser outro. Criando opostos para cada conjuntura - as figuras que possuem controle sobre as instituições em condados americanos contra jornalistas que cada vez mais perdem a influência que atingiram noutra época -, o próprio papel do cardeal nesta estrutura aponta para a abordagem pastoral: com a fragilidade de pequenas regiões, onde a simplicidade das pessoas acaba sendo corrompida por uma pessoa pública.


Como lutar contra uma força invisível, a fé? Com fatos. Desta forma, as mãos trêmulas de Ruffalo na leitura da carta ou o choque da porcentagem de padres que abusavam de crianças e o papel da igreja em abafar os crimes são sequências inesquecíveis. O mesmo que gera as discussões sobre o que é publicável e o que não é. Porque é ali que McCarthy se torna uma voz respeitável acerca de uma discussão sobre jornalismo e coloca seu nome entre outras obras seminais sobre o papel da mídia.

8 de dezembro de 2015

Garota Dinamarquesa, A

The Danish Girl, Inglaterra, 2015. Direção: Tom Hooper. Roteiro: Lucinda Coxon, baseado na novela de David Ebershoff. Elenco: Alicia Vikander, Eddie Redmayne, Amber Heard, Ben Whishaw, Pip Torrens, Matthias Schoenaerts. Duração: 120 minutos.

De certa forma, é difícil condenar o cinema de Tom Hooper ou chamá-lo de picareta. Porque, ao mesmo tempo em que seus filmes carecem de inteligência na execução dos planos, a direção de atores e a condução dramática de sua história são sempre fascinantes. Em A Garota Dinamarquesa, ancorando-se na franqueza de personagens soberbamente interpretados por Alicia Vikander e Eddie Redmayne, o inglês consegue novamente nos transportar com sensibilidade para uma obra sobre a peculiaridade dos desejos, identidade e a delicadeza do toque.

Sob esta ótica, só a naturalidade com que aborda a descoberta da identidade de gênero de Lili merece aplausos, por não tratá-la como um estereótipo ou num equivocado pré-conceito, já que a transexualidade não quer dizer homossexualidade. Pelo contrário, Einar ama sua mulher e evidencia esse amor sem nunca abandoná-la. Para ele, Lili é outra pessoa. Não à toa, a “prima” é citada em terceira pessoa sempre que possível pelo casal, como se, naqueles momentos, ela realmente não estivesse presente.

Com isto, Gerda Wegener se torna o equilíbrio do casal e a personagem de maior força da narrativa. Se a sua paixão e afeição pelo marido são demonstradas num semblante mais sexual, físico, num primeiro instante; em segundo plano, ela acha apenas divertido que ambos compactuem um segredo tão diferente, não notando o que aquilo tudo poderia significar. É comovente, portanto, a maneira com que sua mudança sucede, já que, após observar um discreto beijo entre Lili e Henrik, a personagem compreende que seu Einar já não está mais ali. 

Vikander é genial ao transparecer cada uma dessas nuances: o amor e devoção pelo marido, o companheirismo que continua tendo com ele e, claro, a sua própria carência em segundo plano. É lindíssimo, desta forma, ela deixando o símbolo final, no clímax, voar. Como se Lili, finalmente, estivesse livre.

Eddie Redmayne, por sua vez, surge completamente diferente do seu personagem de A Teoria de Tudo, cujo também passava por uma transformação extrema. Se no filme de Hawkins, o ator evidenciava os tiques do cientista com as mãos constantemente agitadas e o corpo inclinado; aqui, Redmayne expõe a delicadeza do toque, como se aproveitasse o contato do tecido na pele, como se sentisse desejado, natural, numa intimidade recém-descoberta. Igualmente, o gestual avança conforme suas experimentações; além de sempre manter a cabeça reclinada – salientando sua timidez.


Ao contrário dos indícios prévios, A Garota Dinamarquesa não é um filme de aparências. É uma prosa sobre a descoberta de quem realmente somos.

3 de dezembro de 2015

99 Homes

Idem, EUA, 2014. Direção: Ramin Bahrani. Roteiro: Ramin Bahrani e Amir Naderi. Elenco: Andrew Garfield, Michael Shannon, Laura Dern, Clancy Brown, Tim Guinee, Noah Lomax. Duração: 112 minutos. 
 
No seu excelente Capitalismo – Uma História de Amor, Michael Moore indicava algumas das artimanhas que os grandes conglomerados bancários faziam para continuar inflacionando o lucro e especulando – inclusive se aproveitando da classe média, que assumiam novas hipotecas com a promessa de dinheiro fácil e rápido. A longo prazo, o resultado foi a luta das pessoas na justiça para ficar com seus imóveis, cujo os bancos passavam a reivindicar. 99 Homes, de Ramin Bahrani, estende a discussão da ganância levantada por filmes como Wall Street, usando a moralidade, a lei e a humanidade como ganchos para chegar até aonde quer chegar: a facilidade de se corromper, numa crise. 

Inserindo-nos na perspectiva do “easy money”, que passa a traçar a vida do personagem de Andrew Garfield, o diretor flerta com as sequelas familiares produzidas pela crise imobiliaria nos Estados Unidos, ao mesmo tempo que evidencia a dificuldade em conseguir emprego, o que prepara o terreno para as facilidades oferecidas por Rick Carver. Até onde você iria pelo dinheiro? “Até a recuperação de sua casa”, Nash pensa. Mas essa nunca acaba sendo a realidade, algo refletido nos piores momentos de seu trabalho: o primeiro despejo de um casal e o despejo de um idoso.

Bahrani confia na instabilidade criada, e que gera solidez as camadas de seu roteiro. Se suas frases mostram o desprendimento no mundo dos negócios (“Você não confia em mim? Você me contratou, eu não tenho escolha” e “Fodam-se os sonhos. Por mais 100 casas!” são bons exemplos), o diretor concentra no personagem de um soberbo Michael Shannon o espectro do cortejo e da ambição. Ao mesmo tempo em que seu personagem aperta a mão de um morador, ele o apunhá-la com outra, reprimindo um desdém e vergonha insultantes.

Quase reprisando o papel de Michael Douglas, em Wall Street, o monólogo sobre escolhas, fugas, a falsa preocupação com a lei e de que a América não foi construída por perdedores (já que seria a “terra dos vencedores”, feita por eles e para eles), Shannon é a válvula de 99 Homes. “Eu sou apenas o representante”, diz ele, nem olhando nos olhos de quem está perdendo tudo, quando despeja famílias de suas casas.

Na luta entre a burocracia e a humanidade, resta para Andrew Garfield ser o rosto da empatia, após passear pelos dois mundos. É um pena, portanto, que a limitação de sua transformação seja tão imensa, fazendo com apenas o roteiro possa denunciar o passo a passo que o leva até o clímax final.

Porque, ainda que a alternância entre raiva, tristeza e semblante cosntantemente fechado não auxiliem o trabalho de Garfield, o trabalho de Bahrani é suficiente para ressaltar o quanto um imóvel pode ser gigante quando não há mais com quem dividi-lo.