28 de julho de 2016

Dois Caras Legais

The Nice Guys, EUA, 2016. Direção: Shane Black. Roteiro: Shane Black e Anthony Bagarozzi. Elenco: Russell Crowe, Ryan Gosling, Angourie Rice, Margaret Qualley, Matt Bomer. Duração: 1h56min.

– Você está disposto a achar Deus?
– Não, eu quero é achar a Amelia.

Pouco antes de morrer, Charles Bukowski deixou sua obra-prima definitiva, Pulp, cuja narrativa desbravava o mundo de um detetive mais ou menos acabado, mal sobrevivendo para bancar seu escritório e que certa noite recebe uma visita inesperada de Dona Morte, que lhe coloca em casos episódicos no decorrer do livro. Não é exatamente sabido se há um código do investigador, conforme o tempo passa, a não ser que sua falta de empatia com o mundo reverbera numa trama violenta na mesma medida que espirituosa e dramática. Jackson Healy (Crowe) e Holland March (Gosling) partilham do mesmo semblante dos personagens bukowskianos – mortos em licença, essencialmente perdidos em suas vidas pessoais e tentando se agarrar a algo.

A dinâmica entre Crowe e Gosling dita a história mirabolante de Shane Black, que passa por uma Los Angeles cheia de possibilidades dos anos 70, onde a indústria pornográfica começa a se tornar poderosa e a poluição de automóveis é abafada por um Departamento de Justiça corrupto. Na verdade, o diretor pouco se mostra preocupado em elucidar a paranoia conspiratória que cruza os mundos de Healy e March; interessa-se por suas respectivas vidas e pelo conceito do cinema de ação dos anos 70. Ambos são apresentados por seus costumes rotineiros, através de registros relacionados à televisão e à publicidade que culminam em planos gerais denunciativos acerca de suas localizações: March numa banheira, Healy divagando sobre as crianças de hoje em dia num colégio.

Assim, Shane Black nos mantém conscientes das particularidades dos dois protagonistas, ao indicar um Crowe gordo e sempre levantando suas calças, enquanto Gosling serve como uma lembrança do passado de Healy, com sua inclinação alcoólatra e sempre pronto para outra. Observe como o diretor gosta de enquadrá-los em situações similares, mas agindo de diferentes formas: um exemplo é ambos bebendo e fumando num mesmo balcão, Healy com um charuto e March com um cigarro.

Recheado de diálogos inteligentes e cômicos ("Casamento é comprar uma casa para alguém que você odeia. Lembre-se disso."), Black também é competente em deixar o clima de perseguição adentrar a vida dos personagens naturalmente, nunca deixando a câmera parada e aproveitando gruas e travellings para construir suas sequências – minha favorita, talvez, é aquela em que vários personagens tentam pegar um rolo de um filme. Da mesma forma, o usa da perspectiva é sempre interessante, principalmente ao deixar a ação como plano de fundo: um corpo sendo arremessado do edifício, enquanto os investigadores fogem no elevador é hilário, bem como um carro saindo da estrada e invadindo a casa de uma criança,

Com uma trilha sonora que chega a flertar com o noir, Dois Caras Legais se encanta pela improbabilidade. "Sou invencível. Só isso faz sentido!", March caçoa no segundo ato. E não é como Shane Black não quisesse que seu personagem imaginasse isso, já que ele cai repetidas vezes de edifícios e casas, é atropelado, e segue de pé, ajeitando seu paletó. Apaixonado pelas excentricidades dos filmes de ação dos anos 70, Dirty Harry, Shaft, Desejo de Matar, o cineasta se junta a trupe de Edgar Wright, Guy Ritchie e Martin McDonagh, alimentando-se de uma insanidade sintomática e sedutora.