27 de outubro de 2016

Mostra de São Paulo 2016– Dias 5, 6 e 7 – 24, 25 e 26 de outubro

Após assistir a filmes bastantes divergentes nos últimos três dias, os destaques ficam por conta do fundamentalismo, a depressão e cicatrizes emocionais presentes em obras francesas e brasileiras. A seguir, as críticas continuam:

20. A Menina Sem Mãos (Direção: Sébastien Laudenbach. França, 2016)

Há uma dança sensível e delicada com as cores e os rabiscos de seu desenho no filme do diretor Sébastien Laudenbach, onde uma história forte sobre uma menina que vira mercadoria de seu pai com o diabo em troca de ouro passa a viver sem as mãos. O diabo quer levá-la com ele, mas a menina, por ser pura, freia as intenções do diabo.

Nesta tradicional história dos irmãos Grimm, Laudenbach aproveita os traços ilimitadores para brincar continuamente com a sua linearidade, tentando não deixar com que o espectador se sinta entediado: assim, o diabo é percebido em múltiplas aparências ou seus personagens podem voar ou ser auxiliados por divindades sem que estranhemos. O cineasta também é eficiente em ressaltar o contraste das cores: o castelo perdendo a cor na ausência da princesa, os ambientes mais vivos quando seus personagens estão apaixonados e assim por diante.

Igualmente, frases como 'como o ouro, eu a quero suja” e“Adeus, já que você não vai com o Diabo” evidenciam certa maturidade. Laudenbach só fica devendo, talvez, na própria linguagem que escolhe contar a história, pois, embora seja ilimitada, não permite que criamos laços completos com aqueles seres – por não aparecerem completamente a nós.

(3 estrelas em 5)

21. Leste-Oeste (Direção: Rodrigo Grota. Brasil, 2016)

Como um velho blues, a pulsação do filme de Rodrigo Grota reside na melancolia, na bebida e na estrada que nos define. Não à toa, os seus personagens são pilotos ou vivem no meio de competições de automobilismos: andando em círculos, Leste-Oeste proporciona genuinamente uma colagem de cenas da vida, onde cabe ao espectador se identificar ou não com cada frase, cada ação e cada instante vivido por pessoas perdidas em suas respectivas realidades.

Ezequiel é o fio que desencadeia as rachaduras numa família que segue enlutada por João, irmão de nosso protagonista, filho preferido e piloto de potencial. Sua morte precoce evoca no ambiente familiar incertezas muito maiores do que aquelas pessoas são capazes de lidar, deixando com que uma voz num rádio ou uma música em alto volume preencha o vazio que eles sentem. Nessa união, a sequência que Stela canta uma música inacabada de João, de sua ex-banda, é uma das mais tocantes de 2016.

Assombrados pelo fantasma do familiar, Stela, Angelo, Ezequiel, Pedro são apenas pedaços atormentados tentando se alimentar de pequenos prazeres. Deste modo, nada mais significativo, que o próprio diretor sublinhe em seu clímax que o silêncio é uma forma de comunicação (“Meu silêncio sempre foi apenas seu!”). Não importa a distância, a estrada é a mesma.

(5 estrelas em 5)

22. 5 Mulheres (Direção: Olaf Kraemer. Alemanha, 2016)

Um final de semana que não sai como esperado, uma morte acidental, a polícia que não é avisada, a tensão entre personagens que passam pela mesma situação – enfim, nada é novo no filme de Olaf Kraemer. A luta do diretor está por sua comédia, que se assume como estúpida para entusiasmar o espectador. É algo que consegue, aqui e ali, principalmente por investir em situações constrangedoras, como as cinco amigas decidirem deixar um estranho, que afirma ser irmão do rapaz assassinado, se hospedar na casa delas, ou as tentativas de esconder o corpo ou as coincidências absurdas.

Olaf não está preocupado com sua mensagem, ele quer nos divertir. Com a câmera sempre próxima dos rostos daquelas mulheres, ele consegue criar empatia o suficiente para nos importarmos com ela e sabermos quem é cada uma, mas a maneira burocrática como lida com todo o resto não perdoa a frustração.

Não sabendo como terminar sua história, algo básico, no fim, a conexão com as amigas não é o suficiente para querermos passar mais um verão com elas. O tempo é curto.

(2 estrelas em 5)

23. The Stopover (Direção: Muriel e Delphine Coulin. França/Grécia, 2016)

A primeira cena do filme das irmãs Coulin já ilustra muitíssimo bem o que estamos prestes a testemunhar: colocando-nos de frente ao olhar de Aurore, a narrativa já assume quem será nossos olhos e ouvidos naquela realidade tempestuosa do pós-guerra. O período se chama Descompressão, que é quando os soldados fazem uma escala num hotel cinco estrelas para extravasar seus tormentos, desabafar sobre suas missões e serem diagnosticados pelo governo se estão aptos ou não para voltar a realidade.

The Stopover segue uma cartilha de filmes que retratam desordens de soldados, após períodos extremos: a tensão com que a violência iminente cresce, por exemplo, faz com que imaginamos que Aurore e Marine estejam em perigo todo o tempo. O trauma está nos detalhes. Está na forma como uma soldada enfia uma faca na boca e começa um vai e vem ou um soldado acendendo um isqueiro sob seu polegar. Na sensação de liberdade ao deixar os aposentos escolhidos pelo governo.

As irmãs Coulin também se interessam na ótica machista presente na corporação e o maior debate do filme reside na ausência da denúncia de abuso por parte de colegas: muitos poderão considerar apenas o choro de Aurore enquanto ouve todos cantando a mesma canção em uníssono uma forma covarde de lidar com a situação. Talvez, não. Porque é exatamente evidenciando as bandeiras franceses no 3D que faz reviver as memórias cruéis da guerra e o símbolo nos seus uniformes que as diretoras trazem o papel do país em permitir que certas coisas aconteçam sob sua tutela. E como chegamos a isso.
 
(5 estrelas em 5)

24. Live Cargo (Direção: Logan Sandler. Bahamas/EUA, 2016)

Tão pálido e sem personalidade quanto sua fotografia em preto e branco, Live Cargo é o primeiro filme do diretor Logan Sandler. E dá para perceber. Procurando não se comprometer em sua mensagem política, ao mesmo tempo que tenta dar uma natureza pretensiosa ao narrar tráfico de pessoas e refugiados, o diretor resolve tudo em seu último ato como quem precisa seguir uma fórmula previsível: a batalha final, o casal feliz pra sempre e uma sensação de recomeço.

A história se passa em um Bahamas consumido por ganância e corrupção, onde um casal de luto se refugia para lidar com seus problemas e se vê diante de uma batalha entre o dono da ilha e um traficante, após o roubo de um barco. Na trama de Sandler, entretanto, as individualidades são ressaltadas por olhares caricatos de maldade ou sofrimento; sem que precise se envolver ou notar quem realmente são aquelas pessoas na tela. Não nos importa. Tudo é construído para dar uma espécie de alumbramento. Culminando num exercício de paciência.

(2 estrelas em 5)

25.Zero Days (Direção: Alex Gibney. EUA, 2016)

Desde sua primeira cena, o novo e perturbador documentário de Alex Gibney sobre um malaware chamado Stuxnet versa perfeitamente com o livro de Glenn Greenwald sobre seu encontro com Snowden – Sem Lugar Para Se Esconder. Evidenciando personalidades públicas que se escondem através de suas pastas confidenciais para fugir da lei, o diretor discorre sobre a falsa sensação de segurança que passamos nos dias atuais, apontando nossa fragilidade cibernética e passividade diante das chamadas guerras silenciosas.

Montando seu documentário entre passagens por códigos que viram notícias ou simulações, em fusões autoexplicativas, Gibney traz à tona quase uma investigação jornalística ao expor que, se autoridades não falam a respeito, outras saídas são necessárias. Assim, a linearidade de sua estrutura já lhe beneficia por fazer com que o espectador compreenda a linguagem difícil que embarca e seguir uma linha investigativa: depois que Gibney dá de cara com o termo confidencialidade, ele busca jornalistas, hackers, ex-ministros e chefes de inteligência, empresas de segurança e, claro, informantes.

Quase como um lead jornalístico, o diretor nos envolve na discussão sobre o enriquecimento do urânio para chegar exatamente onde quer: os cientistas nucleares assassinados, os ataques vingativos de hackers e o temor de uma nova guerra sem precedentes. Diante do desconhecimento sobre as múltiplas possibilidades oferecidas por essas guerras silenciosas, Gibney demonstra seu próprio terror com o andamento de seu documentário, culminando nas cenas impactantes em que cientistas descrevem malawares que causam danos físicos e vírus que começam no Departamento de Defesa para se alastrar pela humanidade e nos deixar à mercê.

“Se você pode observar uma rede, você pode manipulá-la”, afirma um dos entrevistados. Nessas guerras silenciosas, onde homens podem fazer qualquer coisa em nome da segurança, a frase que descreve perfeitamente a situação vêm do próprio clímax: “nós encontramos o inimigo e éramos nós”.

(5 estrelas em 5)

26. A Garota Desconhecida (Direção: Jean-Pierre e Luc Dardenne.França, 2016)

Ao deixar de abrir a porta do consultório para uma garota que pede ajuda, pois o período de seu expediente havia terminado e descobrir mais tarde que a desconhecida havia sido assassinada, a doutora Jenny começa sua própria investigação para se livrar da culpa que sente. Esse é o ponto primordial da história dos irmãos Dardenne: as nossas ações e o que elas geram de consequência em nossas vidas particulares.

Todavia, aqui, ambos se entregam a uma história vazia e no controle automático, onde as coincidências e as emoções calculadas só não são mais presentes do que as decisões apavorantes da protagonista – ao deixar sempre a polícia de fora ou tentar procurar os criminosos sozinha. Dono de uma honestidade extrema, igualmente, A Garota Desconhecida se repete o tempo todo para inchar ainda mais sua trama e buscar convencer o espectador por cansaço: os pais de um paciente sempre voltando ao consultório para contar uma nova história é exaustivo.

Do mesmo modo, as emoções à flor da pele expostas para estranhos sempre soam falsas, como se Jenny estivesse sendo obrigada a contar sobre seus caprichos ou suas dúvidas. No fim, A Garota Desconhecida irrita não apenas por sua ambientação nonsense, mas pela passividade frente ao óbvio, o que o torna o pior filme dos franceses até agora.

(1 estrela em 5)

27. O Estudante (Direção: Kirill Serebrennikov. Rússia, 2016)

Não houve uma experiência mais exaustiva que O Estudante na Mostra de SP de 2016. Com personagens que vem e vão para gritar passagens bíblicas e desabafar seus problemas sociais, o filme do russo Kirill Serebrennikov entra num caminho sempre interessante: o fundamentalismo religioso e suas ramificações sociais.

Acertando na construção de seu protagonista, Veniamin, o diretor consegue ambientar uma ambiguidade invejável para seu adolescente, já que nunca deixa claro se seus atos solenes à Bíblia e sua pregação não passam de uma forma de expor a hipocrisia social (escola e conservadorismo andam de mãos dadas, afinal) ou se realmente Venia se tornou um discípulo do deus odioso que prega. Kirill debate que ninguém se escora no fundamentalismo sem estar numa situação que esteja oprimido – seja pelo medo, pela tristeza ou pela raiva. Seu roteiro acerta, portanto, ao operar essa sua linguagem com um tom de rebeldia que passa a conquistar seus colegas, já que sua atitude estranha passa a gerar um misto de curiosidade e admiração.

Nessa batalha entre juventude e maturidade, a professora Elena é que acaba se tornando a principal vítima e protagonista do filme de Kirill – ao tentar entender o que faz com que um homem saudável se torne devoto e renegue a ciência. Seus ensaios sobre jesus ser homossexual e seus discípulos a primeira comunidade gay do mundo são um sopro cômico em algo constantemente pesado.

É por isso que seu final se torna algo tão implausível e óbvio. Deixando a ambiguidade que havia nos conquistado até então, o cineasta pensa que o extremo do fundamentalismo nos impactaria mais do que sua sugestão. Um erro que não lhe custa sua narrativa, mas deixa um gosto amargo.

(4 estrelas em 5)

28. Animais Noturnos (Direção: Tom Ford. EUA/Reino Unido, 2016)

Na sua montanha-russa narrativa, o novo filme de Tom Ford (Direito de Amar) tem um desejo supremo: ressaltar a aproximação de um leitor com uma obra e a conexão que criamos com personagens que recém-conhecemos. É por isso que a personagem de Amy Adams, por exemplo, entrega-se tanto para uma narrativa tão cafona quanto a que está lendo – seu passado ainda lhe atormenta e ela não consegue conviver com ele há mais de 18 anos.

Nesta alegoria sobre empatia, Ford rechaça sua mensagem por apostar significativamente no paralelo entre sua trama – que é algo inexistente. Desta forma, um pássaro batendo numa janela enquanto a protagonista lê sobre um tiro no livro ou o manuscrito caindo no chão ao mesmo tempo que um baque acontece na trama de Animais Noturnos são sempre desconcertantes. E se a química entre Adams e Gyllenhall ao menos empolga no campo real, o tom sério que Ford procura dispor na trama literária prejudica, já que passamos a entrar em histórias completamente díspares e tentamos notar semelhanças.

Assim, cenas que dão um certo alívio cômico dentro de seu clima pragmático, como aquela cena em que o xerife interpretado por Michael Shannon ridiculariza sua situação e seu câncer, tornam-se um oásis. Mas, que como num deserto, são escassas.

(2 estrelas em 5)

29. Mulher do Pai (Direção: Cristiane Oliveira. Brasil, 2016)

Em sua casa estreita e de pouca luz, Malu e seu pai Ruben (Marat Descartes, brilhante) começam a ficar mais íntimos, após a morte da vó da garota que gerenciava a casa. O pai cego não pode se cuidar sozinho e Malu precisa amadurecer rápido demais. É assim que inicia o brasileiro Mulher do Pai cuja missão é dar vida para pessoas isoladas da insanidade mundana da cidade e curiosos sobre tudo.

Carregando a mesma essência de Lua em Sagitário, por exemplo, onde “forasteiros” revitalizam as tensões em ambientes familiares, o filme da diretora Cristiane Oliveira aposta na química entre seus personagens, ao mesmo tempo que expõe uma curiosidade pelo corpo. Adolescentes descobrindo o sexo e conversando sobre suas novas descobertas rendem momentos espirituosos. Nem tanto quanto Malu começa a sentir algo estranho por seu pai, quando o vê tomando banho pela primeira vez. Distante todo esse tempo e ainda o chamando pelo primeiro nome, o roteiro provoca esse tom incestuoso que instabiliza o drama açucarado e competente que vinha até então: na aproximação de pai e filha.

Cenas como as da filha descrevendo o filme do Trasnformers para Ruben ou o pai ouvindo as conversas de sua filha atrás da parede (um simbolismo eficiente) são os grandes momentos de Mulher do Pai. Uma pena que a diretora não ache o bastante.

(3 estrelas em 5)

30. O Segredo da Câmara Escura (Direção: Kiyoshi Kurosawa. França/Bélgica/Japão, 2016)

Uma das coisas mais interessantes do terror dramático O Segredo da Câmara Escura diz respeito a projeção do daguerreótipo, um aparelho de fotografia histórico e o grande percussor da fotografia junto com Niépce. Atualizando a invenção para tempos mais contemporâneos e evidenciando a natureza cansativa da fotografia histórica (já que seus primeiros idealizadores ficavam horas para conseguir algumas sombras), Kurosawa poderia brincar com a concepção do tempo de exposição na fotografia da maneira menos terna possível. Infelizmente, não é o caminho escolhido, já que o diretor prefere contar uma história muito mais cafona sobre ilusões fantasmagóricas.

E se ainda o filme ensaia essa entrada no desgaste físico e mental das modelos das fotos, Kurosawa matuta uma ideia de assombração semelhante A Mulher de Preto que nunca funciona, tornando-se involuntariamente risível as aparições da mulher de azul – que nunca é explicada ou colocada como importante para o roteiro. Tudo não passaria de uma fabricação da mente dos fotógrafos de O Segredo da Câmara Escura.

No fim, o passeio acaba sendo tão desgastante quanto ficar parado para ser fotografado por um daguerreótipo.

(1 estrela em 5)

31. Deserto (Direção: Guilherme Weber. Brasil, 2016)

No seu universo selvagem, o diretor Guilherme Weber tem um desejo bem explícito ao decorrer do seu primeiro longa-metragem: a idealização de uma sociedade caótica e similar ao que conheceríamos por mundo. Lá estarão nossos primeiros sonhos, primeiras especializações e, claro, os primeiros contatos com a morte e o assassinato. A sociedade que a trupe circense vive é uma denúncia de um Brasil atual, para Weber, em que o descontrole é invariável.

Não à toa, Weber escolhe personagens alegóricos para representar essa sociedade: artistas que podem fazer o papel, entregando-se por absoluto, sem que critiquemos tanto esse fundamentalismo. O problema do brasileiro é sua controvérsia cínica que cria ao estipular negros e prostitutas sendo representadas por dois homens brancos, sugerindo um debate que não existe. E piora quando as piadas relacionadas ao “Negro” da vila retornam às raízes do racismo adolescente, como quando certo personagem diz que não viu o negro porque estava escuro. Entregando uma natureza caricatural para o papel da prostituta, igualmente, o diretor prejudica uma chance de debate ao passar a expor o homem como um garanhão enrustido.

Por outro lado, o cineasta acerta em constantemente evidenciar a proximidade da vizinhança, assim como as decisões cabíveis a alguns personagens que soam bem convincentes – o padre fechando a porta ao olhar o “Negro” na chibata é revelador. O mesmo da fotografia de Rui Poças, que sempre dando valor ao contraluz e usando grandes angulares para ressaltar as andanças daquele circo, é o que eleva o filme de Weber a uma plasticidade ímpar.

Todavia, a insistência de Weber em garantir essa discussão sobre papéis sociais acaba saindo pela culatra, fazendo com que pareça que o que a sociedade considera monstros circenses sejam exatamente monstros sociais. Uma ironia indesculpável.

(2 estrelas em 5)

32. Estados Unidos Pelo Amor (Direção: Tomasz Wasilewski. Polônia/Suécia, 2016)

No seu universo de personagens infelizes e trágicos, Estados Unidos Pelo Amor compartilha a nudez como seu equilíbrio narrativo para suas múltiplas realidades. “Você é feliz?” pergunta uma das irmãs retratadas pela lente de Tomasz Wasilewski. A resposta dada pelo diretor ao longo do filme parece simples: não, ninguém é.

Numa Polônia que recém respira possibilidades para o futuro, quatro mulheres não se sentem livres ou desimpedidas. Pelo contrário, a provável ausência de opressão faz com que cada uma das personagens sofra invariavelmente com uma depressão cada vez mais acentuada. Todas se perguntam o mesmo: o que diabos fiz com minha vida e agora como faço para arranjar esses lapsos de felicidade? O sexo parece a resposta principal. Agata usa seu marido para promover escapes da realidade em noites quentes, Renata fica obcecada pela jovem vizinha, Marzena, que por sua vez não consegue encontrar sua própria estabilidade. Iza, irmã de Marzena, diretora do colégio, igualmente não sabe como proceder com sua paixão pelo pai de uma de suas alunas que acaba de perder a esposa.

Dono de uma palidez acachapante, o filme de Wasilewski nos traz à essa rotina sempre com uma atmosfera rústica e julgadora: a câmera se aproximando cada vez mais dos personagens, por exemplo, após cenas confortáveis (como a janta que inicia o filme), sublinha essa autoexclusão das protagonistas em suas realidades. Nenhuma se sente confortável em meio a sociedade. O diretor, aliás, sabe o que faz: uma das cenas mais plausíveis da obra é exatamente quando todos são conduzidos em pequenos grupos para um único caminho no domingo – a igreja. Assim, não são apenas os conjuntos habitacionais que parecem os mesmos, mas as vidas daquelas pessoas. Todos seguem o mesmo caminho.

É isso que torna Estados Unidos Pelo Amor uma obra consciente: usar seu retrato de figuras debilitadas a favor de sua melancolia.

(4 estrelas em 5)

24 de outubro de 2016

Mostra de São Paulo 2016– Dias 3 e 4 – 22 e 23 de outubro


Nesses dois novos dias de festival, o que se destacou foi a busca pela imagem alternativa, a fuga do óbvio, que muitos diretores buscam em seus filmes mais experimentais - às vezes, funciona, como o caso da obra de Bressane; outras, não. A seguir, os nove filmes aos que assisti nesses dias 3 e 4 da Mostra de SP:


11. Fica Mais Escuro Antes do Amanhecer (Direção: Thiago Luciano. Brasil, 2016)

Numa das cenas mais abomináveis do ano, o diretor Thiago Luciano decide focar apenas as narinas do dono de uma empresa de gelo pouco antes dele atacar sua funcionária, sedento por sexo, como um predador. Pouco depois, o mesmo personagem se tranca numa geladeira para se matar e fazer com que esqueçamos do que havia feito antes – ou, pior, compreendamos.

Luciano tenta uma abordagem socialmente parecida com curtas-metragens brasileiros eficientes, tais como Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho, e O Tempo Que Leva, de Cíntia Domit Bittar, porém confundindo a depressão com ausência de sentimentos – algo extremamente comum em filmes do gênero, diga-se de passagem. Assim, o protagonista presenteando sua esposa com uma pedra, a fim de que ela dê um nome e cuide dela, torna-se ainda mais hilário quando até mesmo o diretor esquece dela ao decorrer da narrativa.

O mais próximo da estagnação e da denúncia que Fica Mais Escuro Antes do Amanhecer acaba oferecendo, ao fim, é sua vulnerabilidade estrutural.

(1 estrela em 5)

12. El Olivo (Direção: Icíar Bollaín. Espanha, 2016)

Se El Olivo sugere ser um filme sobre rotinas, em seu primeiro ato, é forte o quanto a obra de Bollaín ganha em profundidade nos olhos de uma jovem de 20 anos, que trabalha em uma granja de frangos familiar e cuida do avô, que parou de falar há vários anos, após os filhos venderem uma antiga oliveira herança de família.

Alma é uma personagem sensível, calorosa e rebelde, ao mesmo tempo. Mas sem nunca esquecer o que lhe fez ser assim: sua paixão pela natureza, ensinada pelo avô. O retrato dessa química é sempre nostálgico e belo, nas lentes de Icíar Bollain, que destaca seus flashbacks como se eles fossem extremamente necessários para lembrar Alma de seu passado – dentro de seu relacionamento familiar agarrado em memórias. Observe, por exemplo, o primeiro encontro entre ela e o avô, no filme, no meio de árvores sem vida, com suas raízes escancaradas: um simbolismo belo.

Da mesma forma, o constante tratamento de construtoras e empresas como monstros nunca soa infantil, mostrando um tom ambientalista interessante – não só personagens plantando para o futuro no clímax final, como também princípios de manifestações ao redor da oliveira, tornam-se cenas inesquecíveis.

E ainda que seja um filme cômico (“Você não pode ir, é o aniversário de seu casamento! Mas ele irá se divorciar!”), é no drama e no relacionamento entre avô e neta que El Olivo nos encanta. Em duas cenas similares, no alto de uma oliveira, o choro de Alma chega até nós como divisores funcionais – no final, sem o avô para consolá-la, ela encontra em seus familiares o que sempre buscou: um mundo que todos possam confraternizar a mesma coisa.

(5 estrelas em 5)

13. Aloys (Direção: Tobias Nolle. Suíça/França, 2016)

Até os minutos finais, Aloys não se define como o que ele realmente é: um espelho fascinante sobre nossa espetacularização acerca de relacionamentos platônicos e nossas idealizações. Por que viver algo, se podemos imaginá-lo de nossa própria forma? Aproveitar as nossas próprias vírgulas ou darmos nossas próprias exclamações, sem interrogações ou algo que possa nos afugentar?

O personagem-título nasce quase como alguém saído de um filme de Roy Andersson, em seu misto de tédio, agonia e frustração. Sente-se enjaulado em sua realidade. E é só no espectro de uma fantasia, na pele de uma vizinha tão confusa e insana quanto ele, que Aloys se encontra. A cena em que ambos simulam um show ao redor do piano de seu pai é a cena mais significativa da vida do detetive.

Como resultado, o homem apagado e repetitivo, dá vida a um homem que passa a aceitar sua própria condição. Assim, quando ele decide se abrirá ou não a porta para a mulher que mudou a sua vida, ele responde bem mais do que isso.

(4 estrelas em 5)

14. O Último Trago (Direção: Pedro Diógenes, Luiz Pretti, Ricardo Pretti. Brasil, 2016)

É comum notar a ânsia pela imagem alternativa, a fuga do burocrático, que os diretores brasileiros tentam buscar cada vez mais em suas narrativas estruturais. A ausência de palavras, o apego pelo silêncio, a solidão extrema são peças rotineiras nesses tabuleiros. Mas isso vem com um custo.

O Último Trago não é uma obra controversa ou difícil, ela é imatura, sem critério e prejudicada pela visão de três diretores diferentes, já que num momento assistimos a um drama noturno, noutro um terror cômico. E se isso nos leva a closes sem propósito ou uma trama indígena caótica, em que até manifestações sobrenaturais dão às caras, o roteiro ainda se esforça para ser o mais piegas possível, com frases tais quais “o mar está gozando” ou “o amor é uma desgraça”, como se significassem algo profundo.

Estéril e problemático, O Último Trago é uma viagem introspectiva para seus diretores, que estão muito mais preocupados em fazer filmes pessoais do que com algum significado universal.

(1 estrela em 5)

15. La Ciénaga – Entre el Mar y la Tierra (Direção: Carlos Del Castillo. Colômbia, 2016)

Vencedor de três prêmios em Sundance, La Ciénaga conta a história de um rapaz incapacitado que vive em um pântano, ao lado do mar do Caribe, aos cuidados de sua mãe, Rosa. Sua rotina é preenchida pela paixão que nutre pela sua vizinha Giselle, ao mesmo tempo que possui um sonho de entrar no mar, algo que não é permitido pelos seus aparelhos respiratórios.

O filme de Castillo, como é de se esperar, não foge de um melodrama clássico e pesado. A química entre mãe e filho, a dor e, claro, a esperança de momentos pontuais jogam La Ciénaga em caminhos conhecidos. Talvez, o maior problema seja seu exagero em criar situações emocionais e não conseguir entregá-las: um grande exemplo é quando um rato passeia pelo corpo de Alberto, sem que ele possa fazer nada, e pouco nos sentimos tenso pelo rapaz. Já que a pena é mais importante, na visão do diretor.

Deste modo, La Ciénaga carece da intensidade que gostaria de ter e pouco oferece.

(2 estrelas em 5)

16. A Repartição do Tempo (Direção: Santiago Dellape. Brasil, 2016)

Quando um carro do governo chega numa repartição pública para averiguar a produção dos funcionários da REPI (o registro de patentes e invenções), um plano detalhe revela a placa do carro da senadora: 171. Aproveitando seu tom caricatural desde que observamos as brincadeiras com o funcionalismo público, a terceirização e o chefe que fala em meritocracia sendo filho de uma mulher de alto cargo, Dellape expõe a natureza ridícula de sua narrativa com um dom invejável.

Afinal, é na surrealidade de A Repartição do Tempo que está a diversão, nunca em sua seriedade. É o que faz o drama de Zé, Shirley, Jonas e outros funcionários ser tão tragicômico. Claro que há uma mensagem pontual sobre economia e sociedade, mas mesmo quando existe é na comédia que Dellape busca sua qualidade (“eu te coloco numa repartição fantasma e tu me vira manchete?”).

Ancorando-se nesse clima despretensioso, o diretor entrega um dos melhores filmes nacionais de 2016.

(4 estrelas em 5)

17. A Dragon Arrives (Direção: Mani Haghighi. Irã, 2016)

O iraniano A Dragon Arrives tem como sua principal engrenagem o mundo de superstições iraniano e nossa precária sabedoria sobre a morte e suas ramificações. Criando uma alegoria sobre a existencialidade, Mani Haghighi intercala três momentos distintos na sua narrativa: a investigação de Babak, um documentário sobre os acontecimentos e um interrogatório.

Esse amontoado de perspectiva, claro, fragiliza a estrutura, ainda que não completamente. Porque há na história de Babak uma textura coesa e que versa perfeitamente com os enquadramentos de Haghighi: numa das melhores cenas do longa-metragem, por exemplo, o espectador vai se aproximando aos poucos de uma leitura dentro da cabana de um morto, ao lado do cemitério, numa afronta às superstições daquele povo.

Entretanto, é visível que o diretor parece não confiar plenamente em sua história, deixando com que a cada retorno ao tom documental, o seu universo fique em segundo plano, limitando a empatia a alguns segundos.

(3 estrelas em 5)

18. 24 Semanas (Direção: Anne Zohra Berrached. Alemanha, 2016)

Astrid descobriu que sua gestação será mais complicada do que imaginava: o seu filho foi diagnosticado com síndrome de down – cabe a ela e ao marido, Marcus, em consequência, a decisão de ter o filho ou não, já que, em casos do tipo, a justiça alemã permite que abortos tardios sejam realizados.

E é sempre questionado os acréscimos da família de Astrid em discussões que não cabem a eles, que o roteiro de Berrached e Carl Gerber encontra uma lucidez admirável para tratar de algo tão pesado, pois, ao mesmo tempo em que aponta o caráter questionável e o preconceito de alguns parantes (“O que tem de bom?”), ele suscita um debate, ainda que deixa claro que a decisão final sempre será de Astrid. Todos são coadjuvantes, nisto. E mesmo nas discussões com o marido, a personagem mostra sua luta interna diante do nascimento da criança sem precisar recorrer a palavras: um exemplo é quando ela coloca sua mão na parede, durante uma briga, como se estivesse acuada naquele momento.

Berrached também usa o choque para despertar reações: de uma visita a uma instituição de down para uma balada ou o crescimento da gestação apenas para o impacto mais tarde, quando descobrimos junto com Astrid que Down não é o único desafio. Nessa constante fé e autojulgamento, 24 Semanas é um bom exemplar sobre o fato de nem sempre estarmos seguros de nossas escolhas, pois há algo maior do que isso: somos humanos e podemos errar. Quem vai saber!?

(4 estrelas em 5)

19. Beduíno (Direção: Júlio Bressane. Brasil, 2016)

Captando a imagem como um voyeur de sua própria personalidade, se é que isso seja possível, Bressane abre as portas para a metalinguagem de seu novo filme ao já nos indicar um buraco de fechadura como o centro de nossas intenções e do quadro, na introdução: estamos espiando uma realidade que não é a nossa. 

Nem a deles, tampouco. Já que a história de Beduíno, como se existisse, é através de encenações de dois dramaturgos que atuam etapas diferentes da vida, numa espécie contínua de quadros – pinturas belíssimas, aliás, se nos concentrarmos na mise-en-scène.

Toda a construção das imagens de Bressane tem em vista uma moldura, um quadro, uma arte, um posicionamento correto. Num primeiro momento, os personagens de Alessandra Negrini e Fernando Eiras caminham pelas ruas sem destino, sem se olhar, eles só vão se notar quando um deles (ela, no caso) parar e chamar a atenção. Bressane é um homem de sensações, closes, apega-se ao que está fora do quadro tanto quanto o que está dentro. Além disso, ele brinca com seu espetáculo inventivo, o que ele gosta de chamar de inatual: uma das cenas mais impactantes talvez seja a de Negrini cercada por cordas na cama, enquanto ouvimos o barulho provocador delas esticando.

Noutra cena, o diretor evidencia o encanto da personagem diante das sombras, enquanto observamos atrás dela uma figura se aproximando. No velório, outra cena digníssima, a poesia serve para amparar a imagem. Não é uma novidade que ainda o fio de uma história é necessária para entrarmos com mais substância nas estruturas que Bressane cria. Mas, aqui, a ausência funciona.


(4 estrelas em 5)

22 de outubro de 2016

Mostra de São Paulo 2016– Dias 1 e 2 – 20 e 21 de outubro


Os dois primeiros dias da 40ª Mostra de Cinema de SP foram marcados por filmes que tratam de pessoas solitárias que não se encaixam na sociedade. Estão em busca do autoconhecimento. Isso é exatamente o oposto do que mais se destacou no festival em 2014, quando minha fiz minha primeira cobertura, onde o econômico-social-político importava muito mais do que individualidades. Foram dez filmes nesses primeiros dois dias, os quais seguem analisados:

1. Sami Blood (Direção: Amanda Kernell. Suécia, 2016)

Desde o primeiro frame do filme de Amanda Kernell, a solidão de uma mulher que não se sente pertencente ao mundo que ela precisa adentrar novamente é escancarada. Está no silêncio de seu semblante, além da evidência de seu perfil nos closes da diretora, essa faceta triste e solitária. Assim, não precisamos de muito para compreendermos o grande flashback do filme que nos levará a conhecer a verdadeira história de Elle Marja e como ela se tornou Christina e se afastou definitivamente de sua família, em busca de uma identidade própria.

São mundos completamente díspares, afinal. Kernell pretende denunciar o preconceito social de uma forma firme. “Sou uma criança pobre, mas feliz”, cantam os jovens lapões, como se fossem inferiores. O próprio rio perto da escola de Marja aponta para como o banal pode representar uma grande liberdade. Tanto que a protagonista se sente livre, finalmente, ao brincar com sua irmã no rio, mostrando pra ela uma vida diferente, onde você pode ser capaz de voar.

Não que a obra não tenha sua instabilidade, pois possui, principalmente na forma como distribui o tempo de compreensão de Marja na sociedade e o esquecimento da família atual de Christina ao bel prazer, mas são cenas como a do abuso que Marja sofre pelo governo, que a estuda como se ela fosse um animal, que torna Sami Blood um filme tão importante.

(4 estrelas em 5)

2. IRA (Direção: Jota Aronak. Espanha, 2015)

Não é de hoje que o debate sobre a moral da câmera é algo utilizado para analisar o cinema. No filme espanhol, esse é exatamente o tom que a narrativa encaminha: se alguém confessa que matará alguém na frente de você, enquanto você está gravando, você usaria isso em seu favor ou denunciaria para a polícia? A resposta parece óbvia, quando tratamos de diretores de cinema, mas como o próprio The Jinx lançado ano passado permitia que nos indagássemos acerca de algumas decisões importantes de cineastas, em como conduzir investigações que não lhe dizem respeito, IRA tenta fazer o mesmo.

Aqui, Jota Aronak entra na ficção para tentar trabalhar essa resposta, partindo de uma abordagem documental confusa e que flerta com as montagens policiais de Paul Greengrass. O caráter duvidoso de seu filme, por outro lado, dá as caras quando começa a compactuar moralmente com sua mensagem absurda: já que a justiça não funciona, ela não precisa existir e todos nós deveríamos responder a vingança de forma particular.

Neste perigosíssimo ensaio, IRA se torna uma obra cínica e raivosa sobre justiça com as próprias mãos, com um tom de cinismo ainda mais cruel – já que o diretor sugere pontualmente uma indecisão por parte do protagonista, a qual nunca existe e só serve para comprarmos a ideia de um assassinato.

(1 estrela em 5)

3. O Plano de Maggie (Direção: Rebecca Miller. EUA, 2015)

Em seu flerte óbvio com a cinegrafia de Woody Allen, a diretora americana Rebecca Miller embarca na vida de Maggie, uma mulher neurótica acerca de sua vida pessoal e que enxerga num professor de antropologia uma oportunidade para o amor. A trama parece simples e, caso condensada numa ótica romântica, uma obra convencional; porém, Miller nunca é resignada ao que se espera de sua trama: o que é seu ponto fraco e seu ponto forte.

Pois, por mais que não se observe um filme burocrático, já que as vidas com personalidade dos personagens de Julianne Moore, Ethan Hawke e Greta Gerwig nunca sugerem isso, esse apego à atmosfera (quase jazzista) de Woody Allen faz com que de alguma forma saibamos o que esperar das decisões pouco populares daquelas pessoas. A montagem de Sabine Hoffman, por sua vez, é ainda pior ao tentar administrar os eventos da vida dos casais que os levam até as suas decisões, como a falta de paixão de Maggie por John: um “eu te amo” como elipse chega a ser trágico. Esses risos involuntários ainda aparecem na cena em que Georgette e John estão presos na neve do Canadá e alguém grita que o aeroporto reabriu, assim que a luz retorna.

A falta de timing de O Plano de Maggie acaba não sendo, ainda, o pior dos problemas, já que sua tentativa de fechar a história da protagonista parece ainda mais forçada – ao vermos de longe, uma possibilidade nova, na pele de alguém que nunca pareceu realmente estar ali. Uma pena.

(2 estrelas em 5)

4. O Apartamento (Direção: Asghar Farhadi. Irã, 2016)

Em determinado instante de O Apartamento, novo filme de Farhadi, observamos um idoso aparentemente simples e frágil andando até o quarto de Emad para receber um “castigo” pelo que havia feito com Rana, mulher do iraniano. Durante a tensão que exala da cena, é difícil o espectador compactuar com qualquer um dos lados, já que ambos se evidenciam extremamente frágeis e autojulgados em suas ações.

Esse é o segredo do filme do brilhante Asghar Farhadi: a condução da perspectiva, do nosso olhar frente ao inevitável. O cineasta sabe como direcionar a nossa atenção em coisas simples e em plano intimistas: um exemplo é um dos alunos de Emad parado na porta, sendo analisado por nós, enquanto fala de Rana. Perceba como a câmera muda a perspectiva para o professor, como se depois do que o rapaz havia falado, a sua importância não fosse mais necessária. Da mesma forma, Farhadi continua eficiente em mostrar rachaduras em uma mesma ambientação – enquanto o “palco” pode parecer uma metáfora lógica para nossas vidas, ou as daquele casal, os enquadramentos que Emad e Rana aparecem separados, após o incidente, sempre soam impactantes, como se tudo tivesse mudado.

E mudou. A inserção de uma criança na rotina do casal no segundo ato até traz leveza e uma aproximação entre Emad e Rana novamente, mas não o bastante. As cicatrizes de um evento já se tornaram maiores. O resultado se torna o esperado.

(5 estrelas em 5)

5. Desconhecida (Direção: Joshua Marston. EUA, 2016)

Qual nossa identidade perante a sociedade? O que ela espera de nós? Podemos ser qualquer um ou devemos sempre ser nós mesmos? E quem somos, nesta ótica? O diretor Josha Marston caminha exatamente neste sentido, no fraquíssimo Desconhecida: se fôssemos todos quadros brancos que pudessem ser preenchidos conforme nossa vontade, quem seríamos?

O problema maior da obra de Marston é sua superficialidade. Seu desconforto em trabalhar com múltiplas personalidades faz com que foque em apenas uma: o relacionamento de uma pessoa que abdicou de ser ela mesma e um antigo amor de seu passado. São ecos do passado, sim, que importam para o americano. Todavia, sem conseguir ir adiante no tema principal, Marston desaproveita seus atores e o que eles podem oferecer para seus papeis.

Assim, o som de sapos cantando se torna o máximo que o cineasta consegue oferecer em sua história entediada e que nunca faz jus à vida de uma mulher que foge de si mesmo.

(2 estrelas em 5)

6. A Atração (Direção: Agnieska Smoczynska. Polônia, 2015)

Impassibilidade é um sentimento que dificilmente o espectador sentirá ao assistir o musical polonês A Atração, cuja linha narrativa parece uma cruza bizarra entre Splash, A Experiência e… Cabaret. Na história de Smoczynska, duas irmãs sereias se aventuraram pela cidade de Varsóvia, onde começam a trabalhar numa casa noturna. Tudo muda quando a mais nova se apaixona por um jovem baixista.

Muito mais profundo do que parece, A Atração consegue unir em seu favor seus números musicais com a noção de realidade daquele universo nonsense que a trama se passa. Se uma canção desperta as duas jovens sereias famintas por sexo e carne humana, a sedução através do encantamento é algo que a diretora está disposta a discorrer. Na casa noturna, todos dançam, todos se esbanjam, todos ficam a espera de impressionar alguém ou algo. Ou ser impressionado. Tudo clama por algo novo, por algo que nos entretenha até o amanhecer, por algo que nos seduza, algo que faça valer a pena o autossacrifício.

Não à toa, as sereias se chamam Prata e Dourada, como se fossem pequenos diamantes para o dono da boate. O encantamento pelas duas não se restringe ao público, elas também se sentem realizadas por serem a atração principal – uma das cenas mais importantes do primeiro ato é exatamente quando ambas entram numa loja para se vestir para o show.

Smoczynska também acerta brilhantemente em construir seus números musicais como se fossem frutos de pensamentos dos personagens: assim, fazendo com que sempre desconfiamos se é um sonho ou se aquilo realmente está acontecendo. E se alguns são pouco eficientes, como aquele da sereia mais nova com o baixista no palco, que serve apenas para mostrar uma cumplicidade entre duas pessoas de mundos diferentes; outros, rendem muito, tal qual a cena em que a família disfuncional se dopa e canta sobre o veneno percorrendo suas veias.

A cineasta ainda ensaia uma abordagem bastante feminista, quando se propõe a mostrar a sereia disposta a se sacrificar pelo amado, enquanto ele se apaixona por outra mulher por ser mais confortável para ele. Assim, a monstruosidade da cena final (por parte de alguém que sempre amou a brutalidade, diga-se) se torna mais retumbante. Porque, embora saibamos que havia muito mais a ser oferecido por aqueles personagens, sabemos que é a hora de deixá-los.

(4 estrelas em 5)

7. In The Blood (Direção: Rasmus Heisterberg. Dinamarca, 2016)

À primeira vista, é claro que o dinamarquês In The Blood flerta com o universo beat em suas noites regadas a álcool, sexo e despretensiosidade. No universo dos amigos Simon, Knud, Soren e Esben, a juventude não é só uma etapa, é a única. Ao menos, eles pensam assim ao invadir shows, curtir festas e agir em rebeldia.

In The Blood, assim como outros filmes similares, torna-se empático com seu personagem mais derrotado e depressivo: Simon. O único que pensa estar sozinho no mundo, longe de todos, infeliz e ensaiando uma autodestruição. Todavia, Heisterberg não consegue demonstrar realmente um caminho para sua história ou o que ele pode acrescentar sobre esse período.

No final das contas, Simon é alguém tão medíocre como se autojulga, ainda que o diretor se esforce para dar vida para ele. Desta forma, o verão em Copenhague acaba não sendo interminável só para o protagonista, mas para nós.

(2 estrelas em 5)

8. Radio Dreams (Direção: Babak Jalali. Irã/EUA, 2016)

Há algo de A Última Noite, de Robert Altman, no filme de Jalali que por si só já desperta muita curiosidade. Aqui, o que separa a pequena equipe da radio PARS, uma estação exclusivamente persa que atua em São Francisco, de um dia normal, é a vinda da banda Metallica para uma jam com músicos afegãos. A proposta é unir dois mundos através do rock.

Se isso poderia servir como fruto de uma tensão para as pessoas que trabalham na estação, Jalali pouco pensa nisso: para ele, a comédia de situação é mais importante. Portanto, closes em personagens entediados, unindo o excêntrico com o cínico, torna-se uma constante. Não que isso não funcione completamente, pois funciona – repetindo a mesma situação várias vezes, por exemplo, o diretor consegue produzir um impacto maior quando o personagem de Mohsen Namjoo perde a cabeça durante um comercial.

Aliás, é o protagonista que tem os grandes momentos de Radio Dreams, que são poucos. Numa das minhas cenas favoritas, seu descaso com a rotina da rádio é tão grande, que ao ouvir uma Miss Iraniana/Americana falar sobre seu dom de escrever poemas, ele se torna praticamente um irmão distante de Jep, de A Grande Beleza.

Uma pena que o universo enfadonho não nos permita nos aproximar o bastante. De ninguém.

(2 estrelas em 5)

9. Mimosas (Direção: Oliver Laxe. Marrocos/Espanha/França/Catar, 2016)

É irônico que Mimosas seja exatamente como a peregrinação que representa: ainda que contenha imagens belíssimas, tornando-se uma aventura inesquecível, a filosofia pífia que rodeia aqueles personagens e a falta de comunicação entre o trio que pretende levar o corpo de um xeque para onde ele quer ser enterrado faz o filme se autossabotar em estrutura.

Porque não há mais nada na história de Oliver Laxe que nos faça compreender motivações, interesses, possibilidades e morais daquelas pessoas. Não há tensão alguma durante a viagem e suas metáforas nunca funcionam – como suas insistentes cenas com táxis no deserto. E se a fotografia de Mauro Herce enche os olhos, o mesmo não pode se dizer dos atores, que não conseguem nem evidenciar seu cansaço.

No fim, a frase que se destaca no primeiro ato acaba fazendo falta, quando alguém diz: “Só deus determina a quem você precisa se curvar. O diabo não se curva a ninguém”. Quem sabe, o ceticismo não fosse importante, afinal?!

(2 estrelas em 5)

10. The Handmaiden (Direção: Park Chan-Wook. Coréia do Sul, 2016)

Ao entrar numa casa desconhecida, Sooke começa a sentir que está sendo vigiada pelos quadros da casa de Hideko, uma herdeira que leva uma vida pacata junto ao seu tio tirano, que sobrevive às custas de histórias eróticas lidas para ricaços. Assustada com a atmosfera do casarão, Sooke desperta situações cômicas ao entrar no quarto de Hideko pela primeira vez e ouvir uma história sobre o fantasma de sua tia – pouco antes da jovem sair correndo por trás dela com um lençol branco para pregar uma peça. Ali, o que se torna raro no filme, estamos dentro de uma visão de terceira pessoa, do lado de fora, olhando para as duas pela janela, sem consciência particular. É apenas uma introdução.

Esse é o segredo do genial Park Chan-Wook ao nos levar às perspectivas de Hideko e Sooke, separadamente, a partir do segundo ato. Ao não conhecermos propriamente suas intenções, a surpresa que seus pontos de virada causam são enormes. O sul coreano, aliás, pouco tenta falar sobre a invasão japonesa na Coreia do Sul (a única cena talvez mais atrevida, nesta ótica, seja crianças marchando logo atrás de soldados na chuva), pois ele sabe que seus personagens se encarregarão de expor a hipocrisia daquele cenário de forma sutil.

A paixão pelo brutal, pelo masoquismo, dos grandes ricos que se excitam com a descrição de mulheres subjugando homens sublinham esse quadro. Park trata a masculinidade e sua tentativa de ser viril como algo comicamente desprezível – não só dos idosos escondendo seus membros com a mão ao ouvir uma das histórias contadas por Hideko, como também o tio batendo na tia e na sobrinha enquanto seu pênis fica ereto (num plano detalhe eficiente) ou em como o Conde só se preocupa em manter seu órgão antes de seu destino inevitável.

Deste modo, o que antes era chibata, torna-se prazer e algo que não desperta mais memória para Hideko, na cena final, em que as duas dividem um instrumento de dor para atingirem o orgasmo. É, ao mesmo tempo, lindíssima a forma como o cineasta sublinha o encantamento uma pela outra: a cena mais óbvia é a da banheira, onde cada uma de suas perspectivas são mostradas, numa forma brilhante de simular uma tensão – o olhar, o lábio úmido… 

Assim como em Carol, Park se preocupa com a sensação de cada uma e com a leveza da paixão em contraste com o descontrole do tesão. Um paradoxo lindo para se filmar. E que o cineasta faz como poucos. Uma obra-prima. 

(5 estrelas em 5)