Os dois primeiros dias da 40ª Mostra de Cinema de SP foram marcados por filmes que tratam de pessoas solitárias que não se encaixam na sociedade. Estão em busca do autoconhecimento. Isso é exatamente o oposto do que mais se destacou no festival em 2014, quando minha fiz minha primeira cobertura, onde o econômico-social-político importava muito mais do que individualidades. Foram dez filmes nesses primeiros dois dias, os quais seguem analisados:
1.
Sami Blood (Direção: Amanda Kernell. Suécia, 2016)
Desde
o primeiro frame do filme de Amanda Kernell, a solidão de uma mulher
que não se sente pertencente ao mundo que ela precisa adentrar
novamente é escancarada. Está no silêncio de seu semblante, além
da evidência de seu perfil nos closes da diretora, essa faceta
triste e solitária. Assim, não precisamos de muito para
compreendermos o grande flashback do filme que nos levará a conhecer
a verdadeira história de Elle Marja e como ela se tornou Christina e
se afastou definitivamente de sua família, em busca de uma
identidade própria.
São
mundos completamente díspares, afinal. Kernell pretende denunciar o
preconceito social de uma forma firme. “Sou uma criança pobre, mas
feliz”, cantam os jovens lapões, como se fossem inferiores. O
próprio rio perto da escola de Marja aponta para como o banal pode
representar uma grande liberdade. Tanto que a protagonista se sente
livre, finalmente, ao brincar com sua irmã no rio, mostrando pra ela
uma vida diferente, onde você pode ser capaz de voar.
Não
que a obra não tenha sua instabilidade, pois possui, principalmente
na forma como distribui o tempo de compreensão de Marja na sociedade
e o esquecimento da família atual de Christina ao bel prazer, mas
são cenas como a do abuso que Marja sofre pelo governo, que a estuda
como se ela fosse um animal, que torna Sami Blood um filme tão
importante.
(4
estrelas em 5)
2.
IRA (Direção: Jota Aronak. Espanha, 2015)
Não
é de hoje que o debate sobre a moral da câmera é algo utilizado
para analisar o cinema. No filme espanhol, esse é exatamente o tom
que a narrativa encaminha: se alguém confessa que matará alguém na
frente de você, enquanto você está gravando, você usaria isso em
seu favor ou denunciaria para a polícia? A resposta parece óbvia,
quando tratamos de diretores de cinema, mas como o próprio The Jinx
lançado ano passado permitia que nos indagássemos acerca de algumas
decisões importantes de cineastas, em como conduzir investigações
que não lhe dizem respeito, IRA tenta fazer o mesmo.
Aqui,
Jota Aronak entra na ficção para tentar trabalhar essa resposta,
partindo de uma abordagem documental confusa e que flerta com as
montagens policiais de Paul Greengrass. O caráter duvidoso de seu
filme, por outro lado, dá as caras quando começa a compactuar
moralmente com sua mensagem absurda: já que a justiça não
funciona, ela não precisa existir e todos nós deveríamos responder
a vingança de forma particular.
Neste
perigosíssimo ensaio, IRA se torna uma obra cínica e raivosa sobre
justiça com as próprias mãos, com um tom de cinismo ainda mais
cruel – já que o diretor sugere pontualmente uma indecisão por
parte do protagonista, a qual nunca existe e só serve para
comprarmos a ideia de um assassinato.
(1
estrela em 5)
3.
O Plano de Maggie (Direção: Rebecca Miller. EUA, 2015)
Em
seu flerte óbvio com a cinegrafia de Woody Allen, a diretora
americana Rebecca Miller embarca na vida de Maggie, uma mulher
neurótica acerca de sua vida pessoal e que enxerga num professor de
antropologia uma oportunidade para o amor. A trama parece simples e,
caso condensada numa ótica romântica, uma obra convencional; porém,
Miller nunca é resignada ao que se espera de sua trama: o que é seu
ponto fraco e seu ponto forte.
Pois,
por mais que não se observe um filme burocrático, já que as vidas
com personalidade dos personagens de Julianne Moore, Ethan Hawke e
Greta Gerwig nunca sugerem isso, esse apego à atmosfera (quase
jazzista) de Woody Allen faz com que de alguma forma saibamos o que
esperar das decisões pouco populares daquelas pessoas. A montagem de
Sabine Hoffman, por sua vez, é ainda pior ao tentar administrar os
eventos da vida dos casais que os levam até as suas decisões, como
a falta de paixão de Maggie por John: um “eu te amo” como elipse
chega a ser trágico. Esses risos involuntários ainda aparecem na
cena em que Georgette e John estão presos na neve do Canadá e
alguém grita que o aeroporto reabriu, assim que a luz retorna.
A
falta de timing de O Plano de Maggie acaba não sendo, ainda, o pior
dos problemas, já que sua tentativa de fechar a história da
protagonista parece ainda mais forçada – ao vermos de longe, uma
possibilidade nova, na pele de alguém que nunca pareceu realmente
estar ali. Uma pena.
(2
estrelas em 5)
4.
O Apartamento (Direção: Asghar Farhadi. Irã, 2016)
Em
determinado instante de O Apartamento, novo filme de Farhadi,
observamos um idoso aparentemente simples e frágil andando até o
quarto de Emad para receber um “castigo” pelo que havia feito com
Rana, mulher do iraniano. Durante a tensão que exala da cena, é
difícil o espectador compactuar com qualquer um dos lados, já que
ambos se evidenciam extremamente frágeis e autojulgados em suas
ações.
Esse
é o segredo do filme do brilhante Asghar Farhadi: a condução da
perspectiva, do nosso olhar frente ao inevitável. O cineasta sabe
como direcionar a nossa atenção em coisas simples e em plano
intimistas: um exemplo é um dos alunos de Emad parado na porta,
sendo analisado por nós, enquanto fala de Rana. Perceba como a
câmera muda a perspectiva para o professor, como se depois do que o
rapaz havia falado, a sua importância não fosse mais necessária.
Da mesma forma, Farhadi continua eficiente em mostrar rachaduras em
uma mesma ambientação – enquanto o “palco” pode parecer uma
metáfora lógica para nossas vidas, ou as daquele casal, os
enquadramentos que Emad e Rana aparecem separados, após o incidente,
sempre soam impactantes, como se tudo tivesse mudado.
E
mudou. A inserção de uma criança na rotina do casal no segundo ato
até traz leveza e uma aproximação entre Emad e Rana novamente, mas
não o bastante. As cicatrizes de um evento já se tornaram maiores.
O resultado se torna o esperado.
(5
estrelas em 5)
5.
Desconhecida (Direção: Joshua Marston. EUA, 2016)
Qual
nossa identidade perante a sociedade? O que ela espera de nós?
Podemos ser qualquer um ou devemos sempre ser nós mesmos? E quem
somos, nesta ótica? O diretor Josha Marston caminha exatamente neste
sentido, no fraquíssimo Desconhecida: se fôssemos todos quadros
brancos que pudessem ser preenchidos conforme nossa vontade, quem
seríamos?
O
problema maior da obra de Marston é sua superficialidade. Seu
desconforto em trabalhar com múltiplas personalidades faz com que
foque em apenas uma: o relacionamento de uma pessoa que abdicou de
ser ela mesma e um antigo amor de seu passado. São ecos do passado,
sim, que importam para o americano. Todavia, sem conseguir ir adiante
no tema principal, Marston desaproveita seus atores e o que eles
podem oferecer para seus papeis.
Assim,
o som de sapos cantando se torna o máximo que o cineasta consegue
oferecer em sua história entediada e que nunca faz jus à vida de
uma mulher que foge de si mesmo.
(2
estrelas em 5)
6.
A Atração (Direção: Agnieska Smoczynska. Polônia, 2015)
Impassibilidade
é um sentimento que dificilmente o espectador sentirá ao assistir o
musical polonês A Atração, cuja linha narrativa parece uma cruza
bizarra entre Splash, A Experiência e… Cabaret. Na história de
Smoczynska, duas irmãs sereias se aventuraram pela cidade de
Varsóvia, onde começam a trabalhar numa casa noturna. Tudo muda
quando a mais nova se apaixona por um jovem baixista.
Muito
mais profundo do que parece, A Atração consegue unir em seu favor
seus números musicais com a noção de realidade daquele universo
nonsense que a trama se passa. Se uma canção desperta as duas
jovens sereias famintas por sexo e carne humana, a sedução através
do encantamento é algo que a diretora está disposta a discorrer. Na
casa noturna, todos dançam, todos se esbanjam, todos ficam a espera
de impressionar alguém ou algo. Ou ser impressionado. Tudo clama por
algo novo, por algo que nos entretenha até o amanhecer, por algo que
nos seduza, algo que faça valer a pena o autossacrifício.
Não
à toa, as sereias se chamam Prata e Dourada, como se fossem pequenos
diamantes para o dono da boate. O encantamento pelas duas não se
restringe ao público, elas também se sentem realizadas por serem a
atração principal – uma das cenas mais importantes do primeiro
ato é exatamente quando ambas entram numa loja para se vestir para o
show.
Smoczynska
também acerta brilhantemente em construir seus números musicais
como se fossem frutos de pensamentos dos personagens: assim, fazendo
com que sempre desconfiamos se é um sonho ou se aquilo realmente
está acontecendo. E se alguns são pouco eficientes, como aquele da
sereia mais nova com o baixista no palco, que serve apenas para
mostrar uma cumplicidade entre duas pessoas de mundos diferentes;
outros, rendem muito, tal qual a cena em que a família disfuncional
se dopa e canta sobre o veneno percorrendo suas veias.
A
cineasta ainda ensaia uma abordagem bastante feminista, quando se
propõe a mostrar a sereia disposta a se sacrificar pelo amado,
enquanto ele se apaixona por outra mulher por ser mais confortável
para ele. Assim, a monstruosidade da cena final (por parte de alguém
que sempre amou a brutalidade, diga-se) se torna mais retumbante.
Porque, embora saibamos que havia muito mais a ser oferecido por
aqueles personagens, sabemos que é a hora de deixá-los.
(4
estrelas em 5)
7.
In The Blood (Direção: Rasmus Heisterberg. Dinamarca, 2016)
À
primeira vista, é claro que o dinamarquês In The Blood flerta com o
universo beat em suas noites regadas a álcool, sexo e
despretensiosidade. No universo dos amigos Simon, Knud, Soren e
Esben, a juventude não é só uma etapa, é a única. Ao menos, eles
pensam assim ao invadir shows, curtir festas e agir em rebeldia.
In
The Blood, assim como outros filmes similares, torna-se empático com
seu personagem mais derrotado e depressivo: Simon. O único que pensa
estar sozinho no mundo, longe de todos, infeliz e ensaiando uma
autodestruição. Todavia, Heisterberg não consegue demonstrar
realmente um caminho para sua história ou o que ele pode acrescentar
sobre esse período.
No
final das contas, Simon é alguém tão medíocre como se autojulga,
ainda que o diretor se esforce para dar vida para ele. Desta forma, o
verão em Copenhague acaba não sendo interminável só para o
protagonista, mas para nós.
(2
estrelas em 5)
8.
Radio Dreams (Direção: Babak Jalali. Irã/EUA, 2016)
Há
algo de A Última Noite, de Robert Altman, no filme de Jalali que por
si só já desperta muita curiosidade. Aqui, o que separa a pequena
equipe da radio PARS, uma estação exclusivamente persa que atua em
São Francisco, de um dia normal, é a vinda da banda Metallica para
uma jam com músicos afegãos. A proposta é unir dois mundos através
do rock.
Se
isso poderia servir como fruto de uma tensão para as pessoas que
trabalham na estação, Jalali pouco pensa nisso: para ele, a comédia
de situação é mais importante. Portanto, closes em personagens
entediados, unindo o excêntrico com o cínico, torna-se uma
constante. Não que isso não funcione completamente, pois funciona –
repetindo a mesma situação várias vezes, por exemplo, o diretor
consegue produzir um impacto maior quando o personagem de Mohsen
Namjoo perde a cabeça durante um comercial.
Aliás,
é o protagonista que tem os grandes momentos de Radio Dreams, que
são poucos. Numa das minhas cenas favoritas, seu descaso com a
rotina da rádio é tão grande, que ao ouvir uma Miss
Iraniana/Americana falar sobre seu dom de escrever poemas, ele se
torna praticamente um irmão distante de Jep, de A Grande Beleza.
Uma
pena que o universo enfadonho não nos permita nos aproximar o
bastante. De ninguém.
(2
estrelas em 5)
9.
Mimosas (Direção: Oliver Laxe. Marrocos/Espanha/França/Catar,
2016)
É
irônico que Mimosas seja exatamente como a peregrinação que
representa: ainda que contenha imagens belíssimas, tornando-se uma
aventura inesquecível, a filosofia pífia que rodeia aqueles
personagens e a falta de comunicação entre o trio que pretende
levar o corpo de um xeque para onde ele quer ser enterrado faz o
filme se autossabotar em estrutura.
Porque
não há mais nada na história de Oliver Laxe que nos faça
compreender motivações, interesses, possibilidades e morais
daquelas pessoas. Não há tensão alguma durante a viagem e suas
metáforas nunca funcionam – como suas insistentes cenas com táxis
no deserto. E se a fotografia de Mauro Herce enche os olhos, o mesmo
não pode se dizer dos atores, que não conseguem nem evidenciar seu
cansaço.
No
fim, a frase que se destaca no primeiro ato acaba fazendo falta,
quando alguém diz: “Só deus determina a quem você precisa se
curvar. O diabo não se curva a ninguém”. Quem sabe, o ceticismo
não fosse importante, afinal?!
(2
estrelas em 5)
10.
The Handmaiden (Direção: Park Chan-Wook. Coréia do Sul, 2016)
Ao
entrar numa casa desconhecida, Sooke começa a sentir que está sendo
vigiada pelos quadros da casa de Hideko, uma herdeira que leva uma
vida pacata junto ao seu tio tirano, que sobrevive às custas de
histórias eróticas lidas para ricaços. Assustada com a atmosfera
do casarão, Sooke desperta situações cômicas ao entrar no quarto
de Hideko pela primeira vez e ouvir uma história sobre o fantasma de
sua tia – pouco antes da jovem sair correndo por trás dela com um
lençol branco para pregar uma peça. Ali, o que se torna raro no filme, estamos
dentro de uma visão de terceira pessoa, do lado de fora, olhando
para as duas pela janela, sem consciência particular. É apenas uma
introdução.
Esse
é o segredo do genial Park Chan-Wook ao nos levar às perspectivas
de Hideko e Sooke, separadamente, a partir do segundo ato. Ao não
conhecermos propriamente suas intenções, a surpresa que seus pontos
de virada causam são enormes. O sul coreano, aliás, pouco tenta
falar sobre a invasão japonesa na Coreia do Sul (a única cena
talvez mais atrevida, nesta ótica, seja crianças marchando logo
atrás de soldados na chuva), pois ele sabe que seus personagens se
encarregarão de expor a hipocrisia daquele cenário de forma sutil.
A
paixão pelo brutal, pelo masoquismo, dos grandes ricos que se
excitam com a descrição de mulheres subjugando homens sublinham
esse quadro. Park trata a masculinidade e sua tentativa de ser viril
como algo comicamente desprezível – não só dos idosos escondendo
seus membros com a mão ao ouvir uma das histórias contadas por
Hideko, como também o tio batendo na tia e na sobrinha enquanto seu
pênis fica ereto (num plano detalhe eficiente) ou em como o Conde só
se preocupa em manter seu órgão antes de seu destino inevitável.
Deste
modo, o que antes era chibata, torna-se prazer e algo que não
desperta mais memória para Hideko, na cena final, em que as duas
dividem um instrumento de dor para atingirem o orgasmo. É, ao mesmo tempo,
lindíssima a forma como o cineasta sublinha o encantamento uma pela
outra: a cena mais óbvia é a da banheira, onde cada uma de suas
perspectivas são mostradas, numa forma brilhante de simular uma
tensão – o olhar, o lábio úmido…
Assim como em Carol, Park se
preocupa com a sensação de cada uma e com a leveza da paixão em
contraste com o descontrole do tesão. Um paradoxo lindo para se
filmar. E que o cineasta faz como poucos. Uma obra-prima.
(5
estrelas em 5)
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