Os últimos dias da Mostra de SP foram marcados pela despedida melancólica. Em compensação, Comboio do Medo terminou o festival para mim da melhor forma que poderia ter terminado. Abaixo, os últimos filmes que assisti na Mostra 2016:
53.
Ma'Rosa (Direção: Brillante Ma. Mendoza. Filipinas, 2016)
Inserida
num mundo pobre e em que o tráfico vira um acréscimo necessário para se
sustentar, Rosa Reyes é dona de uma pequena loja de conveniência, onde também
vive com o marido e quatro filhos. Confiando na boa vontade das pessoas que
fazem parte de seu círculo, Rosa e Nestor acabam se dando mal e são presos. Em
consequência, os seus filhos acabam precisando angariar uma quantia de 50 mil
para livrar seus pais da cadeia.
A
pobreza não é o único adversário da personagem de Jaclyn Jose e, Ma'Rosa, mas a
pobreza narrativa de Brillante Ma. Mendonza em tratar a corrupção das forças
policiais com infantilidade e tolice. Nada é profundo na história de Mendonza,
assim, ele ainda tenta criar novos conflitos para inchar mais uma narrativa que
sofre com a ausência de sua personagem-título durante a sua segunda metade.
Jaclyn é, sim, o centro do filme, embora não seja tratada como.
Deste
modo, os filhos percorrendo os bairros pobres para pagar a polícia corrupta
parece ser um desvio de percurso, já que se essa ideia fosse trabalhada ao
decorrer do longa, Ma'Rosa talvez tivesse outra conclusão. Porque, no final, o
longa de Mendonza acaba apenas devendo.
(2
estrelas em 5)
54.
Então Morri (Direção: Bia Lessa e Dany Roland. Brasil, 2016)
Todos
temos uma fonte de conforto. Alguns pensam em Deus antes de partir, outros
precisam dar um último adeus para os familiares, tomar alguns goles de cachaça
antes de morrer e há até quem não queira renegar o diabo para não comprar briga
com ninguém se existir um pós-vida. O interesse dos diretores Bia Lessa e Dany
Roland é exatamente percorrer cada etapa da vida de uma mulher, em retrocesso,
da morte ao nascimento, para conjecturar sobre o que nos leva ao nosso momento
derradeiro, com que cicatrizes, com quais lembranças e com quais paixões.
Bia e
Dany falam sobre eternidade, ao mesmo tempo. Claro que Deus acaba sendo a
palavra constante, nos últimos momentos,mas a intenção dos diretores é bem mais
profunda ao falar sobre espírito: ambos também estão curiosos com o que faz
esse círculo girar. Com a câmera próxima e a convivência com aquelas pessoas
trazendo uma disenibidição enorme, os diretores podem não revelar a resposta de
uma vida, porém, eles certamente conseguem demonstrar uma existência em toda
sua plenitude e complexidade.
Como o
primeiro contato com a morte surge, a nossa sensibilidade com cada emoção da
vida – o primeiro dente sendo arrancado, a primeira derrota na escola, a
primeira vez que nos amamentamos. Em sua doçura, Então Morri ainda termina com
uma homenagem a José Carlos Avellar e Eduardo Coutinho – duas pessoas que,
certamente, ficariam encantadas com o documentário, caso estivessem vivos.
(4
estrelas em 5)
55.
Cartas da Guerra (Direção: Ivo Ferreira. Portugal, 2016)
Recitando
cartas que o escritor Antônio Lobo Antunes escreveu durante o seu período como
médico do exército português no leste de Angola, aliado com a fotografia
lindíssima de João Ribeiro, Cartas da Guerra é o filme de uma temática só: seu
compromisso é evidenciar a prosa do escritor. Assim, falta personalidade ao
filme de Ivo Ferreira, que nunca consegue um confronto genuíno em sua narrativa
ou até mesmo criar uma atmosfera de guerra.
Miguel
Nunes como o personagem principal, igualmente, é apático. Sua indiferença sem
nuances termina prejudicando ainda mais um filme natimorto. Sua beleza reside
somente nos versos de Antunes, os quais rendem expressões intensas, como:
“fazer amor até confundirmos os corpos um do outro”. Talvez a saída seja
comprar um exemplar do livro. Economizaria tempo.
(2
estrelas em 5)
56. Os
Demônios (Direção: Philippe Lesage. Canadá, 2015)
Caloroso
ao tratar sua juventude com ingenuidade, uma das cenas mais icônicas de Os
Demônios mostra o pequeno Fêlix escondido num armário (um simbolismo eficiente)
e assustado com a possibilidade de ter pegado AIDS, após ouvir de uma colega
sobre a doença. Cativante por sua ingenuidade, um filmaço.
(4 estrelas em 5)
57. A Rede (Direção: Kim Ki-Duk.
Coréia do Sul, 2016)
A
principal dificuldade de embarcar no novo filme de Kim Ki- Duk, A Rede,fica por
conta de sua mensagem política extremamente problemática que ao não querer se
associar com nenhuma das duas Coréias, utiliza uma atmosfera hipócrita para
denunciar um homem perdido entre dois países e suas respectivas ideologias.
O
pescador norte-coreano interpretado magistralmente por Ryoo Seung=Bum é o fio
condutor do longa-metragem e Ki-Duk sabe disso. O diretor faz questão de se
ancorar nele todo o tempo, tentando ressaltar que ambos os países pouco se
preocupam com o fator humano, quando estão obcecados por descobrir espiões em
suas terras.
O
grande problema do roteiro de Kim Ki-Duk é o paradoxo que cria ao procurar
sempre rebaixar a ideologia de ambas, fingindo-se de imparcial. Maniqueísta no
seu retrato da Coréia do Sul, num primeiro momento, o diretor chega a sempre
sublinhar falas de chefes de estado afirmando o quanto são bons e não podem
deixar uma pessoa do norte da Coréia voltar para uma ditadura, enquanto estão
oprimindo numa sala de interrogatório o tal ser humano. Ou, pior, quando o
cineasta faz questão de mostrar o mais cruel dos torturadores colocando o seu
casaco sobre o colega que está dormindo, como se aquilo fosse o bastante para
criar uma humanidade em seu personagem – algo que nunca acontece e faz com que
a cena em que ele grite o hino de seu país seja constrangedora.
Sua
tentativa de criar um discurso anticapitalista, ao mesmo tempo que renega o comunismo,
torna a sua obra pouco sustentável. E observe que o pescador sendo forçado a
abrir os olhos para as maravilhas do mundo moderno da Coréia do Sul
contrasta (e muito) com as edificações
de seus personagens sobre o fato de serem livres, mas não terem dinheiro.
Assim,
o pescador de Seung-Bum não fica apenas estagnado entre a ideologia de dois
países, mas igualmente não resiste as dúvidas de quem o dirige. Uma ironia
fina.
(2
estrelas em 5)
58. Vermelho Russo (Direção Charly Braun.
Brasil/Rússia, 2016)
A
nossa ânsia por enganações na arte sempre foi objeto de estudo por críticos e
cineastas. Em 1973, por exemplo, Orson Welles se debruçava sobre o assunto em Verdades e Mentiras, um dos
documentários definitivos sobre trapaças. No cinema, a ilusão é algo almejado
pelos melhores cineastas, quando entramos no caminho do suspense - sentir que
você foi passado para trás em um filme pode ser uma das melhores sensações,
caso feito de forma orgânica.
Vermelho
Russo, o documentário de Charly Braun, de certa maneira trabalha sobre isso no
seu diálogo constante entre encenação e metódo: afinal, na tela, o que você
está vendo é produzido ou não é? É verdade ou é mentira? Você está sendo
trapaceado por suas atrizes completamente entregues aos seus papéis ou elas
realmente sentem aquilo de maneira real?
Pouco
importa a resposta disso, portanto, mas o debate que suscita. Ao entrarem em
cena como duas melhores amigas desinibidas frente a câmera, o espectador já
assume que, ao se tratar de um documentário, Martha e Manoella são exatamente
aquelas pessoas na vida real. Portanto, as decisões que tomarão a partir do
segundo ato serão naturais e uma soma do que passaram em suas vidas até então –
extracampo, algo que não tivemos contato, mas supomos ser real.
Essa
brincadeira entre encenação e método torna a experiência de Braun uma das
melhores do ano, já que os diferentes tipos de personagem que as duas atrizes
criam paralelos interessantes sobre suas vidas, e só aí faz surgir a discussão
sobre o que está sendo encenado e o que não está. Você encenar o sofrimento
versus vivê-lo é um dos maiores processos do método Stanislavski e isso é
sempre evidenciado em Vermelho Russo. Por consequência, a cena em que Martha
Nowill e Maria Manoella começam a brigar em suas camas e uma ridiculariza a
outra com "por que tu não grita assim em cena" é marcante.
Braun
brinca com essa perspectiva com talento, fazendo com que a cena em que as duas
amigas aparecem na mesa do café em posições contrárias, mas com um sorriso no
rosto, como se tivessem feito uma grande cena, seja um dos momentos mais
reveladores do filme. A mesma eficiência é visualizada na chegada à Rússia,
quando o cineasta expõe a necessidade de se reinventar em outro país e,
consequentemente, no palco.
Neste
processo de aprendizagem, a diversão não fica restrita as duas atrizes. É o
espectador que acaba se encantando.
(5 estrelas em 5)
59. Hedi (Direção: Mohamed Ben Attia.
Tunísia/Bélgica/França, 2016)
É
no mínimo cínico que um filme que precise tanto falar em liberdade como Hedi, o
vencedor do Urso de Praqta de melhor ator para majd Mastoura e de melhor
primeiro longa, tenha como principal defeito ser conservador em sua abordagem.
Hedi dialoga com seu personagem-título em suas indecisões e, no percurso,
acomoda-se em sua estrutura romântica.
Hedi
é um jovem tunisiano que está com os preparativos de seu casamento encaminhados
e com o seu destino selado pela sua mãe e por seu deus. Ele faz uma última
viagem a trabalho, antes de seu casamento, quando começa a repensar sobre sua
vida. No hotel que fica em uma cidade litorânea de Mahdia, ele conhece uma moça
chamada Rim, que trabalha no resort. Ambos se envolvem, sem ela saber que Hedi
já havia um compromisso firmado.
Attia
nunca se livra das correntes de seu drama romântico para tentar se aprofundar
mais na relação de seu protagonista com seus familiares e sua luta interna,
algo que ofusca um pouco os conflitos finais. Fica subentendido que aquela
pessoa sofre, ela está num relacionamento complicado com tudo e que precisa
respirar novos ares. Mas Attia acredita que não necessita se esforçar mais para
construir essa problematização, o que lhe custa caro.
Assim,
obviamente, compreendemos a intenção de Hedi em sua decisão final: começar a
viver uma vida que ele deseje e não em função de outra pessoa. Porém, sem uma
força dramática que nos permite criar algum tipo de vínculo com tudo aquilo.
(2
estrelas em 5)
60. Comboio do Medo (Direção: William Friedkin. EUA,
1977)
Um dos melhores filmes
de Friedkin e perfeito para fechar a programação.
(5 estrelas em 5)
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