1 de novembro de 2016

Mostra de São Paulo 2016– Dias 8, 9 e 10 – 27, 28 e 29 de outubro



Foram onze filmes nesses três dias, incluindo o documentário brasileiro Martírio, que é certamente um dos melhores filmes do ano. Segue:

33. O Dia Mais Feliz da Vida de Olli Maki (Direção: Juho Kuosmanen. Finlândia/Alemanha/Suécia, 2016)

Olli Maki é um boxeador que tem a chance de disputar um título mundial de peso-pena. Em cada canto da cidade, o nome de Maki começa a se tornar conhecido em propagandas, anúncios, grandes festas e tudo fica preparado para o grande espetáculo que reunirá o atual campeão de boxe e o humilde padeiro de Helsinque.

É vivendo uma vida à parte da fama, mostrando que sua “grande chance” importa mais aos outros que a ele próprio, Olli Maki é uma figura isolada das pessoas que o cercam para seu momento de glória. Enquanto todos ficam assombrados com a dimensão de um estádio de futebol, o protagonista senta sozinho para divagar sobre suas escolhas. “Vamos lutar e ver o que vai dar”, diz ele na coletiva de imprensa.

Apaixonado, Maki acredita que sua grande luta é um dia em sua vida, o seu casamento é para sempre. E é isso que lhe move. A frustração do resultado nunca acaba sendo dele, mas de quem apostava nele.

O diretor é eficiente nessa conexão entre vida pessoal e profissional de Olli, porém sem nunca se importar realmente em trazer alguma profundidade para aqueles personagens. Tudo passa a ser muito simples e óbvio. Diante das festas de galas que não pertencem ao seu mundo, Maki vai embora com sua esposa atirar pedras no mar – o que sempre lhe definiu: a simplicidade. Entretanto, essa simplicidade causa a previsibilidade de um longa-metragem que ao querer fazer jus ao seu personagem, acaba não envolvendo o público por completo.

(3 estrelas em 5)

34. O Afogamento (Direção: Bette Gordon. EUA, 2016)

Partindo de uma premissa básica de sociopatia humana, a diretora americana Bette Gordon retrata um relacionamento complicado entre um otimista psicólogo infantil e um antigo paciente dele que havia sido condenado por homicídio 14 anos antes. Tom acaba salvando o rapaz recém-saído da prisão de um afogamento, sem saber que era exatamente Danny. A partir do salvamento, um jogo entre os dois começa.

Copiando a estrutura de Cabo do Medo, Gordon joga de um só lado do espectro, na sua tentativa de soar profunda sobre desejos primitivos: Danny, uma espécie de Robert De Niro mais novo, é um sociopata clássico do terror – seduz suas vítimas com seu charme, sua cara de bom moço e segue seu mesmo mode operandi. Só que enquanto a vulgaridade de De Niro era o mais chocante do filme de Scorsese, o personagem de Danny nunca parece ameaçador ou ao menos esconder algo dentro de si, algo que só seu olhar ou risadinhas maléficas acabam sublinhando aqui e ali.

A comparação entre os filmes basicamente reside em seus protagonistas e na atmosfera voyeurística do filme, aliás, e só. Gordon discute as nossas limitações diante da natureza humana num apanhado tradicional que fica pior ao se render ao clichê de thriller, onde a única saída que um personagem avalia é a morte. Sem ambiguidade. Desta forma, Gordon expõe que, embora muito conheça de filmes do gênero, pouco sabe fazer.

(1 estrela em 5)

35. O Último Vagão (Direção: Andreas Schaap. Alemanha, 2016)

O Último Vagão é basicamente uma tragédia anunciada desde sua primeira cena. Como se fosse um filme de conclusão de curso, Andreas Schaap retrocede a ação, dirige cenas em slow motions por estilo e usa establishing shots amadores como um recurso pobre para inchar a narrativa. Entretanto, não é isso que faz O Último Vagão uma estupidez sem precedentes. É seu roteiro.

Com um design de produção pobríssimo – perceba como a avalanche é evidenciada no vagão, com apenas uma grande camada de neve contra a janela – e uma fotografia que basicamente só sabe utilizar dois filtros (o branco do quarto e os tons dessaturados do vagão), o roteiro é hilário ao tratar uma situação tão dramática, como pacientes em coma tentando reencontrar seu caminho, com um tom nonsense inesquecível: em determinado momento, Greta explica para sua filha que não pensou nela quando morria, mas, sim, num baralho de cartas que seu chefe havia lhe dado. Da mesma forma, a sua tentativa de soar inteligente em seu suspense, com seus personagens achando que estão mortos, é ainda mais engraçada quando um personagem dá um grito ao se ver no espelho com algo literalmente no meio de sua cabeça.

Schaap é ainda mais hilário por não perceber o que está fazendo com seu filme. Assim, o seu humor involuntário, transforma os seus conflitos em situações ridículas e absurdas. Uma de suas principais cenas, a protagonista ouvindo um discurso adolescente de Deus, é um dos momentos mais cômicos do ano. Ao menos, O Último Vagão diverte. Infelizmente, é por sua estupidez.

(1 estrela em 5)

36. Antes o Tempo Não Acabava (Direção: Sérgio Andrade e Fábio Baldo. Brasil/Alemanha, 2016)
 
Certamente, o diferencial da obra de Fábio Baldo e Sérgio Andrade é o contraste apresentado na vida de Anderson, um jovem indígena que enfrenta ao mesmo tempo preconceito da sua tribo por ir morar na cidade e da própria sociedade. O rapaz é curioso, a liberdade completa, por mais incrível que pareça, nunca foi o forte de seu antigo povo. Anderson não está mais limitado. Seus gritos que ecoam no mar, enquanto contempla suas infinitas possibilidades é uma sequência interessantíssima.

Da mesma forma, os diretores são hábeis em criar paralelos entre a natureza e a periferia de Manaus, lugar em que Anderson começa a viver. Se antes o cajado batendo na terra no ritmo do cântico era a rotina daquele jovem, os sons das máquinas da fábrica que trabalha tomam nossos ouvidos. A realidade passa a ser outra – da produção, da robótica.

Anderson se experimenta nesse novo mundo. Ele dança ao som de Wesley Safadçao e se sente livre pra transar com quem quer. É um retrato competente de alguém que está recém se conhecendo.

(3 estrelas em 5)

37. A Luta do Século (Direção: Sérgio Machado. Brasil, 2016)

Embora seu início nos remeta ao som do gongo, aos gritos da plateia e passagens por jornais, o documentário de Sérgio Machado sobre os lutadores Reginaldo Hollyfield e Todo-Duro não é uma ilustração de suas carreiras, mas, sim, de pessoas fora do ringue. Tanto Reginaldo quanto Luciano tentam esconder, porém sucesso, a admiração que nutrem um pelo outro e, claro, pelo que ambos fizeram pelo boxe nacional. As brigas, o tumulto pré-luta e as trocas de insultos são parte do espetáculo midiático criado em cima de suas carreiras.

Entretanto, é bom que o diretor nunca deixe de expor essa faceta amarga de seus protagonistas sem esquecer de ridicularizar esses tons. Afinal, a rivalidade entre os dois é freada quando suas histórias de vida aparecem. Como a maioria de atletas similares, ambos vieram da periferia, de zonas pobres do nordeste, para tentar a vida no esporte que amavam. Nenhum dos dois ficou rico. Nenhum dos dois teve sorte – ao menos, fora do ringue. E isso os torna cúmplices, parceiros, algo que Machado evidencia levemente, sem que pareça estar se desapegando da lenda entre os dois lutadores.

Claro que Machado acaba deixando escancarada sua preferência ao final de A Luta do Século e quem ele imagina ser o grande vencedor de tudo isso. Mas o que mais se destaca não é a luta ou Reginaldo ou Luciano; são as similaridades que fazem de nós humanos.

(4 estrelas em 5)

38. Como Me Apaixonei por Eva Ras (Direção: André Gil Mata. Portugal/Bósnia, 2016)

Há algo de Abbas Kiarostami no filme de André Gil Mata. Está em seus planos centrais, na continuidade da melancolia e da rotina, na sofisticação da linguagem simples. Sena, que vive solitariamente entre uma projeção e outra, poderia ser qualquer um de nós. Ela anda pra lá e pra cá, toma seu café, exibe seus filmes, estende suas roupas, guarda as coisas e começa tudo de novo.

André aproveita seu apuro estético para dar uma grande personalidade pro seu longa-metragem em seus planos longos e centrais. O diretor consegue mostrar o bastante com pouco. Em sua primeira cena na cozinha, por exemplo, a câmara fica estática na linha reta do corredor, com Sena na cozinha preparando seu café. Ainda não estamos permitidos a ver o todo. Mais tarde, ele nos coloca dentro da cozinha, dentro da realidade de Sena, onde a cozinha parece maior do que antes.

O diretor também é consciente em aproveitar o extracampo com ternura, fazendo com que cada instante dividido com Sena pareça importante, ainda que para ela não seja. Ela arrumando o rolo de filme, enquanto a observamos no reflexo do espelho, é um símbolo tão bonito quanto a projeção lembrar uma janela. André muda aqui e ali seus enquadramentos nos ambientes para justamente retirar a monotonia da vida de Sena, que parece viver o mesmo filme rotineiramente e sem perceber o tempo passar – perceba, aliás, o relógio parado na cozinha.

Como me Apaixonei por Eva Ras é um filme de detalhes. E onde eles captam nossa completa atenção sobre a natureza humana.

(5 estrelas em 5)

39. Tempestade de Areia (Direção: Elite Zexer. Israel, 2016)

Tempestade de Areia é uma obra geral sobre a força de duas mulheres numa realidade opressora e patriarcal. É no contraste entre mãe e filha e a natureza comportamental delas naquela sociedade que considera a família acima de tudo que está o segredo do filme de Elite Zexer. Layla começa o longa-metragem apaixonada por um jovem estudante e as possibilidades do seu futuro. Jalila não vê mais futuro e, ao mesmo tempo, não quer que sua filha sofra em seu relacionamento com o pai. A mãe tenta conter a situação, mas se envolve pessoalmente.

São retratos de geração. A filha menor, por exemplo, observa a lua de mel dos novos casórios da janela, como uma preparação para o futuro de sua realidade – e ainda com uma ingenuidade da infância, algo que sua risada ao ver a nova esposa de seu pai caindo na cama e quase a quebrando indica. É curioso, igualmente, a decisão de Layla em ficar pra lutar, uma coisa que seria da personalidade dela – não abandonar a situação ou fugir. Por sua vez, a sua decisão final é praticamente um agradecimento a sua mãe e o que ela faria para Layla ser feliz.

Uma união sofisticada de duas mulheres fortes e que conseguem fortalecer a estrutura de Tempestade de Areia.

(4 estrelas em 5)

40. Lobo e Ovelha (Direção: Sharbanoo Sadat. Afeganistão/Dinamarca/França/Suécia, 2016)

No Afeganistão, o dia a dia de crianças responsáveis pelos afazeres de um pastoreio é marcado por discussões entre elas e suas expectativas do futuro. Nessa realidade pouco convidativa, uma garota que é tida como amaldiçoada pelas amigas e um menino começam uma amizade.

O filme aproveita as suas planícies na fotografia exuberante de Virginie Surdej, ao passo que a direção de Sharbanoo Sadat também passeia com talento pelo cotidiano do pastoreio – analise durante o longa-metragem que ninguém nunca está parado na tela, demonstrando o trabalho dessa zona rural do Afeganistão com todas as suas nuances. A perspectiva escolhida, claro, é a da juventude e sua espirituosidade. O tom cômico do filme nasce exatamente disso (“espero que vocês morram jovens”).

Lobo e Ovelha não é uma obra inventiva, profunda ou brilhante; pelo contrário, sua história é estéril. Mas é inofensiva. Pro bem e pro mal.

(3 estrelas em 5)
 
41. Martírio (Direção: Vincent Carelli. Brasil, 2016)

Passaram-se 15 anos desde a primeira vez que o diretor Vincent Carelli angariou depoimentos da tribo indígena guarani-kaiowá no interior de Mato Grosso do Sul. Mas agora ele precisa voltar. Acentuou-se o debate sobre a demarcação das terras daquele povo e ninguém parece muito bem com isso no governo federal.

É Kátia Abreu, a senadora, o primeiro contato que temos com o pensamento federal sobre o sofrimento e as chacinas praticadas contra os índios sob os olhos dos nossos governantes – inclusive, com apoios. A fala estarrecedora abre as duas horas e quarenta do documentário Martírio: “nós só queremos paz”.

Explicando o tipo de paz que Abreu deseja, Carelli é hábil ao traçar a história dos kaiowá e denunciar a renegação histórica com a tripo para chegarmos nesse momento: passando pelo desenvolvimento da erva-mate, as queimadas, as primeiras expulsões por fazendeiros até chegar nos discursos atuais (“são paraguaios que vem pegar terras de gente trabalhadora”). Assim, tornando a história das tribos acessíveis, o diretor ridiculariza as tentativas de sua demonização, chegando ao ápice na fala de um deputado gaúcho, Heinze, que esbraveja contra os avanços do povo indígena citando Saddam Hussein e o Rei da Noruega.

É sob os olhos cúmplices do governo que o caminho fica mais triste. Vargas, Rondon, a ditadura mostrando métodos de tortura em desfile nacional, o assassinato do tradicionalismo indígena é evidenciado aos poucos em Martírio e como se chegou de 600 mil de hectares de terra para uma luta por 400 hectares.

“Enquanto lutamos pela terra, eles lutam contra nós”, discursa um líder. Uma fala verdadeira demais, quando avaliamos governantes da bancada ruralista usando a expressão “questão indígena” para desfilar seu preconceito assassino aos quatro cantos.

(5 estrelas em 5)

42. Em Outro Momento (Direção: Nahid Hasssanzadeh. Irã, 2016)

Focando o nascimento de um bebê em sua primeira cena, onde ele é evidenciado num parto muito mais cru e seu aspecto ainda não aparenta um ser humano, o laço emocional que a diretora… cria em seu filme nos relacionamentos que se desenvolverão a partir dali não fazem jus ao seu choque inicial.

Controlando tudo de forma muito calculada e casual, a cineasta não consegue impactar seu público por simular suas ações sempre forçando as emoções de seus personagens – como se esperássemos algo parecido de cada um deles. Nem a força das mulheres da família se destaca, embora seja um irmão de alma de Tempestade de Areia, nem o tormento do pai parece genuíno. Seus socos na filha e seu apego por suas tradições nunca soam verdadeiras.

Em Outro Momento acaba sendo, portanto, um filme nulo na construção de seus conflitos. Um banho de água fria.

(2 estrelas em 5)

43. O Nascimento de uma Nação (Direção: Nate Parker. EUA, 2016)

“Estão matando pessoas nas ruas só por serem negras”, diz um dos personagens de O Nascimento de uma Nação – um título perfeito para um filme que não faz jus a sua principal mensagem: ali, a sociedade com seu passado e presente racista e segregador está exposta. Numa mensagem infelizmente atual, com a perseguição de negros pelo sistema judiciário norte-americano apenas pela cor da pele, é a intenção de Park denunciar como tudo isso começou e como o grito de basta ecoou na primeira vez.

Nesta perspectiva, o diretor foca em seu protagonista, Nat Turner, um pregador que lidera o movimento de libertação em 1831. Está no seu olhar, no seu sofrimento e na empatia com seus iguais que Turner ascende como um mártir – na visão de Parker; entretanto, de forma ambígua. Se Turner no tronco gera um dos grandes momentos da narrativa, onde a chibata surge na tela quase como uma serpente deslizando (e perceba que ele falará exatamente em arrancar a cabeça da serpente, mais tarde), as inserções espirituais são sempre maniqueístas e óbvias. Não só as visões da esposa como um anjo, mas também Turner surgir como um comandado de deus – observe a cena em que ele e Sam são separados por uma cruz no enquadramento, enquanto a vingança é consumada.

Igualmente, a estrutura de Parker sobre força e resistência é breguíssima, principalmente ao se preocupar em construir uma história de amor no meio da rebeldia. Elipses em lavoura, tomadas aéreas, closes manipulativos, danças e até uma vela separando um casal na lua de mel são constantes e apaziguadores da brutalidade.

Deste modo, perde-se um pouco do apelo que o olhar emocionado de Turner gera na pregação mais forte de O Nascimento de uma Nação, quando ele começa a exaltar uma nova canção. Porque ao tentar nos convidar a entrar em seu clichê, a obra empalidece frente a outros exemplares do gênero.

(3 estrelas em 5)

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